Paiva Couceiro visto por Fernando Pessoa:
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«Entre outras coisas o sr. deve ter ouvido chamar traidor a Paiva Couceiro. Deve também ter ouvido denunciar e conspurcar uma frase, de que “antes Afonso XIII que Afonso Costa”. Quero fazer – não propriamente a defesa destas duas coisas – da atitude de Couceiro e da frase atribuída aos monárquicos. As considerações, que acabo de exarar, devem dar-lhe a intuição de como essa defesa pode ser feita.
«Entre outras coisas o sr. deve ter ouvido chamar traidor a Paiva Couceiro. Deve também ter ouvido denunciar e conspurcar uma frase, de que “antes Afonso XIII que Afonso Costa”. Quero fazer – não propriamente a defesa destas duas coisas – da atitude de Couceiro e da frase atribuída aos monárquicos. As considerações, que acabo de exarar, devem dar-lhe a intuição de como essa defesa pode ser feita.
Paiva Couceiro é um espírito ferrenhamente tradicionalista. Podemos não concordar – já disse que não concordo – com esse conceito de nacionalidade. Mas ele é sem dúvida um conceito de nacionalidade. É preferível a conceito nenhum. Dentro do seu tradicionalismo pode haver patriotismo; fora dele, e não havendo a criação de novos ideais absolutamente nacionais, não vejo que patriotismo possa haver. Paiva Couceiro viu erguer-se uma instituição, a que alguns maduros e um grande número de gatunos chamaram “a nossa querida República” – e deve ter sentido, senão o pensou lucidamente – que essa instituição vinha arrancar tudo quanto restava – e não era muito – das tradições nacionais, sem lhe substituir absolutamente nada que mostrasse que era uma república portuguesa. Couceiro viu, ou deve ter sentido, que tal República, ou que quer que fosse, representava, nessas condições um atentado contra a Pátria. Era uma factor de dissolução nacional. Não agia senão destrutivamente sobre quanto se pudesse considerar como energizador das almas portuguesas, como congregador das almas portuguesas numa única lusitana. Por isso o tradicionalista Paiva Couceiro sentiu a necessidade de conspirar. Ele foi sempre um grande soldado e um grande patriota; continuou sendo o mesmo soldado e o mesmo patriota. A sua superioridade moral sobre os estrangeiros da nossa República é incomensurável. No seu tradicionalismo exaltado, ele é, apesar de tudo, um português. Eles não são nada, nada, nada. Estrangeiros, e estrangeiros estúpidos; que nem sequer vieram trazer à administração pública aquela honestidade cuja ausência na monarquia lhes serviu de trampolim para as campanhas oposicionistas. A monarquia, é certo, era um regime de ladrões e incompetentes. Mas era um regime que estava cá há oito séculos, que, pelo menos exteriormente estava identificado se não com a nacionalidade, pelo menos com a existência ostensiva da nacionalidade. Substituí-la por um regime que, além de não ser nacional de modo nenhum, continuava as mesmas tradições (estas sim!) de gatunagem e de incompetência, agravando, se talvez não a gatunagem, por certo que a incompetência – eis uma coisa para que não valia a pena ter derramado sangue, perturbado a vida portuguesa, criado maior soma de desprezos por nós que os que já havia no estrangeiro.»
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PESSOA, Fernando – Carta a um herói estúpido. Lisboa: Babel, 2010. ISBN: 978-972-617-225-3
Publicado no blogue "Causa Monárquica"
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