No decorrer do já findo mês de Julho, assistiu-se à evocação da morte da Rainha D. Maria Pia, que infelizmente foi apenas feita nos meios monárquicos, quase não passando para outros. D. Maria Pia foi, por ventura, uma das rainhas que mais marcou a vida e o coração dos portugueses, pela sua bondade e caridade que lhe rendeu o cognome de Anjo da Caridade, com que é sempre evocada, bem como pelo seu papel maternal e constante na Família Real, pelo amor eterno e incondicional ao seu marido D. Luís I, e pelo seu fim trágico, ao ter de sepultar um filho e um neto assassinados, para depois ser expulsa do país que aprendera a amar pela revolução que destronou o seu outro neto. Será, assim, oportuno, recordarmos a sua figura histórica.
Maria Pia de Sabóia nasceu em Turim, a 16 de Outubro de 1847, filha de Vítor Manuel I, primeiro rei de Itália, que à época era ainda e só o Príncipe do Piemonte. A sua mãe era a Arquiduquesa D. Maria Adelaide Francisca Reinero Elisabete Clotilde de Habsburgo. Tinha mais sete irmãos, de entre os quais os reis Humberto I de Itália e Amadeu I de Espanha. O seu padrinho de baptismo foi o Papa Pio IX, que lhe concedeu, nesse mesmo dia, a Rosa de Ouro. A sua mãe viria a morrer em 1854, quando D. Maria Pia tinha sete anos de idade, tendo a sua educação sido dirigida pela Condessa de Vila Marina, que se entregou a essa tarefa com esmero e dedicação. O seu destino cruza-se com os destinos de Portugal a partir da morte do rei D. Pedro V, que morre de febre tifóide a 11 de Novembro de 1861, o que leva ao trono o irmão D. Luís, cuja prioridade será casar e gerar um herdeiro. Aclamado rei, D. Luís I irá procurar uma princesa para pedir em casamento, de acordo com os interesses diplomáticos da altura, aconselhando-se junto da restante família e de outros monarcas, de entre os quais a Rainha Vitória da Grã-Bretanha. Decidiu-se, numa segunda escolha, por D. Maria Pia, que tinha então 15 anos. O pedido é feito por Luís António de Abreu e Lima, camareiro-mor do Rei e Visconde da Carreira, que chega a Turim a 3 de Agosto de 1862. A mão é rapidamente concedida pelo já Rei de Itália e o contrato matrimonial é assinado a 9 de Agosto. Segundo esse contrato, o rei italiano dava um dote de 500.000 francos, acrescidos de 100.000 francos para o enxoval e jóias no valor de 250.000 francos. O dinheiro do dote seria entregue ao Tesouro Português, vencendo o juro de 5% por ano, pago em trimestres ou empregado em bens de raiz. Em troca, o D. Luís dava por hipoteca ao dote da esposa a parte dos rendimentos do Estado que para isso fosse o bastante.
Segue-se uma troca de retratos, fotografias, cartas e telegramas, nos quais o afecto e a paixão começam a ser evidentes, principalmente no rei português, que lhe escreve: “Seremos felizes, as nossas duas almas compreender-se-ão, eu amo-te muito e sei que o amor por mim começa a despontar na tua alma pura e sincera. Vivemos um para o outro nesta vida encantadora onde nos julgamos um só de tal maneira os nossos pensamentos, os nossos desejos são os mesmos.” Ela respondia-lhe no mesmo tom apaixonado, numa torrente de cartas de lá para cá que era quase compulsiva, entre os dois: “Penso com agrado que o tempo que nos separa terá passado em breve e na minha felicidade quando te vir; será um momento muito doce para mim, já que tenho a certeza de que só poderei ser feliz contigo.” Era o inicio de um amor que viria a durar a vida inteira de ambos e a ser recordado como uma das mais bonitas histórias de amor da Casa Real Portuguesa.
Enquanto o interesse da imprensa, nacional e internacional, começava a fazer-se notar, a rainha casa por procuração em Turim, a 27 de Setembro de 1862, tendo o rei D. Luís I sido representado pelo Príncipe Eugénio de Sabóia Carignan, numa cerimónia presidida pelo Arcebispo de Génova. A jovem princesa usava um diadema de brilhantes que fora presente de casamento do Imperador Napoleão III de França e um vestido de rendas que fora presenteado pela Imperatriz. Em Lisboa, por essa data, já se faziam os preparativos para as cerimónias de recepção da nova rainha, e de confirmação dos votos matrimoniais contraídos por procuração. Nas ruas, vendia-se já um vastíssimo mershandising alusivo à boda real, e que nada fica atrás dos casamentos, muito mais mediatizados, dos nossos dias. Desde retratos da princesa, do rei, pratos com as armas e as iniciais dos soberanos, balões, vidros coloridos… alugavam-se janelas só para assistir ao cortejo e toda a baixa lisboeta foi engalanada com arcos, bandeiras e palanques, enquanto mais de 3000 pessoas afluíam à capital para assistir às cerimónias.
A rainha embarcou rumo a Lisboa no porto de Génova a 29 de Setembro, na corveta Bartolomeu Dias, que era ainda escoltada pelas corvetas Estefânia e Sagres. Seguiam ainda na escolta as corvetas italianas Maria Adelaide, Duque de Génova, Itália, Garibaldi e o vapor aviso Anthion. A armada chegou à vista de Lisboa a 5 de Outubro e mal foi avistada pelos faróis de Cascais saíram ao seu encontro, com pavilhões de festa, os vapores de guerra Lince e Argos, acompanhados pelos vapores comerciais Torre de Belém, Açoriano, D. Luís e D. Antónia. A armada fundeou frente a Belém, onde a galeota real levou a bordo da Bartolomeu Dias o noivo, o já idoso rei-consorte D. Fernando II o conselho de Estado e os ministros, que vão dar as boas-vindas à nova rainha. O desembarque real deu-se no dia seguinte, com pompa e circunstância, num pavilhão imitando o templo grego de Himeneu, construído frente ao Cais das Colunas, e engalanado com bandeiras. Depois da recepção da Rainha pelas autoridades, seguiu-se um cortejo solene até à Igreja de São Domingos, onde os nubentes confirmaram os seus votos perante o Cardeal Patriarca de Lisboa e ao som de um Te Deum composto para o efeito por Inocêncio dos Santos. Depois A 8 de Outubro, o casal real recebeu, na Sala do Trono do Palácio da Ajuda, as felicitações do corpo diplomático acreditado na capital. E assim se tornou D. Maria Pia, Rainha de Portugal, aos quinze anos. Logo em 1863, a rainha dava a luz o seu primeiro filho, o Príncipe Real D. Carlos. Em 1865 viria a dar a luz o seu segundo filho, o Infante D. Afonso, Duque do Porto.
A Rainha, sempre afável e correcta de maneiras, sabedora da sua posição e do que podia e não podia dizer ou fazer, por poucas ocasiões interveio nos assuntos da governação, deixando-os para D. Luís enquanto se ocupava da educação dos filhos, como mãe exemplar e atenta que foi, ao estilo da rainha que a antecedeu (D. Maria II, pois D. Estefânia não chegou a ser mãe) e da que a veio a preceder (D. Amélia). Contudo, foi regente por duas ocasiões, aquando de duas visitas oficiais de D. Carlos I, seu filho, em 1902 e em 1904. Mas ainda antes disso, viria a intervir aquando da Saldanhada, um golpe militar liderado pelo Marechal Duque de Saldanha, que cercou o Palácio da Ajuda exigindo a D. Luís a demissão do governo do Duque de Loulé e um novo executivo, presidido por si. D. Luís sabia que, sem o seu apoio e o apoio dos partidos, tal executivo não tinha sustentabilidade, ainda para mais encabeçado por Saldanha, que apesar de ser um militar brilhante e do seu papel na Guerra Civil de 1832-34, tinha um comportamento político errático, fazendo lembrar uns poucos monárquicos do século XXI que pensam que, sozinhos, são a Causa Monárquica. Ciente de tudo isto, e para evitar uma revolta militar em larga escala, o Rei cede à vontade do Marechal e demite o Governo e o Parlamento. Com efeito, os acontecimentos deram-lhe razão pois o executivo caiu três meses depois e o Duque foi afastado como Embaixador em Londres, uma posição na qual não criaria problemas. Contudo, é notável o comportamento de D. Maria Pia nesse dia 19 de Maio de 1870 quando, perante o próprio Saldanha, terá dito num francês exemplar que não lhe perdoava a ousadia de colocar ultimatos ao seu rei e que, se fosse ela a reinar, haveria de ser imediatamente fuzilado. Uma tirada que, pode-se imaginar, terá deixado o marechal septuagenário sem pinga de sangue, perante a presença, coragem e autoridade da rainha.
A 2 de Outubro de 1873, D. Maria Pia voltaria a dar provas da sua força e coragem. Estando em Cascais, para banhos de mar, tinha ido passear com os príncipes pelo areal, até ao Mexilhoeiro. Mas o mar, naquele dia mais encrespado, não perdoou essa ousadia, e logo uma onda arrastava os príncipes para o mar alto. A Rainha não hesitou e lançou-se logo para as águas, com o intuito de salvar os seus queridos filhos. Teriam morrido ali os três se o ajudante do faroleiro da Guia, António de Almeida Neves, não os socorresse, salvando as três vidas que estavam em perigo, tendo sido posteriormente agraciado com a Medalha de Mérito e uma pensão vitalícia.
A Rainha teve ainda nas suas principais prioridades as questões assistenciais e de auxilio aos mais carenciados, seguindo também o exemplo dado pelas suas duas antecessoras, que deixaram obras notáveis nesse campo. Como consequência do terrível inverno de 1876, e das cheias que assolaram o reino nesse ano, muitas famílias ficaram na miséria. D. Maria Pia tomou a iniciativa de instaurar uma comissão para angariar donativos, composta pelo Cardeal Patriarca, o Duque de Palmela, o Duque de Loulé, a Duquesa de Ávila, o Marquês de Ficalho, o Conde de Rio Maior, a Condessa de Sousa Coutinho, a Viscondessa da Gandarinha, a Viscondessa de Porto Covo, o Visconde Ribeiro da Silva, o Visconde de Valmor, Francisco de Oliveira Chamiço, Carlos Ferreira dos Santos e Silva, António José de Seixas, Flamiano Lopes dos Anjos, Pereira de Miranda, Martens Ferrão, D. Gabriela de Sousa Coutinho, D. Maria Teresa de Assis Mascarenhas, D. Maria Palha Brandão, D. Capitolina Viana e D. Maria do Patrocínio Barros Lima Eugénio de Almeida. Os donativos angariados ascenderam aos 200.000$000 réis e com ele a rainha conseguiu formar um fundo especial que foi socorrendo as vítimas daquele inverno mais duro. Esta iniciativa filantrópica foi aclamada na sessão da Câmara dos Deputados de 9 de Janeiro de 1877, pelo deputado da oposição Osório de Vasconcelos e pelo deputado Barros e Cunha, que propôs que a câmara prestasse as devidas homenagens à rainha pelo seu gesto, um voto secundado pela Câmara dos Pares na sessão de 8 de Janeiro. Ainda nesse ano, a Sociedade Francesa de Encorajamento ao Bem conferiu a D. Maria Pia a sua medalha de honra. Nos finais daquele ano de 1877, quando a fome e a seca atacou as gentes do Ceará, no Brasil, a rainha propôs que Portugal ajudasse com a quantia de 36.000$000 réis, retirada do fundo por si criado nesse ano para as vítimas das cheias, o que foi feito. Foi por sua iniciativa que foi fundada, em 1 de Novembro de 1878, a Creche Vítor Manuel, na Tapada da Ajuda, em edifício construído para o efeito. Ficou particularmente lembrada a sua acção aquando do terrível incêndio que consumiu o Teatro Baquet, à Rua de Santo António, no Porto, em 1888, e que foi das maiores tragédias humanas que afectou a Invicta após o Desastre da Ponte das Barcas. Mais de uma centena de vítimas, número ainda hoje incerto, a maioria enterrada num jazigo colectivo feito com partes dos escombros do teatro, no cemitério de Agramonte. Mal a tragédia se soube em Lisboa, a Rainha tomou de imediato a iniciativa, e viajou para o Porto com o príncipe D. Carlos, trajada de negro, numa noite de chuva e vento, para assistir às exéquias comuns dos mortos, na Igreja da Lapa, e às iniciativas de beneficência em prol das vítimas e das famílias enlutadas. Terá ainda visitado as casas dos enlutados, fossem elas ricas ou pobres, para oferecer a sua solidariedade, como rainha, como mãe e como esposa, distribuindo palavras de conforto, e libras de ouro que trazia consigo.
Era, contudo, também uma Rainha, e vivia como tal. Habituada que estava a um certo grau de conforto e luxo, nunca abdicou de viver de acordo com o seu estado e com a sua categoria. É de sua intervenção a redecoração luxuosíssima dos Palácios da Ajuda e da Pena, bem como outras melhorias que ali fez, para maior conforto. Também eram frequentes as suas idas a bailes e ao teatro, a banhos em Cascais e a temporadas de campo em Sintra e em Vila Viçosa. Num baile, em Fevereiro de 1865, terá usado três vestidos diferentes na mesma noite. Contudo, o reino atravessava um período económico difícil, principalmente para o fim do reinado do seu marido, D. Luís I. Um dos seus ministros terá levado à rainha algumas críticas relativas aos seus gastos, que ela terá refutado com uma frase que ficaria para a história: Quem quer rainhas, paga-as!
Em 1889, morria o seu bem-amado esposo, D. Luís I, na Cidadela de Cascais. A Rainha cai no mais profundo desgosto, mas cede o protagonismo para o seu filho D. Carlos, aclamado Rei, e para a Rainha D. Amélia. Retira-se da vida política, passando a habitar sozinha os salões da Ajuda, enquanto os reis se mudam para as Necessidades. Sabe-se que, apesar de a convivência ser pacífica, não gostava muito de D. Amélia. Assim, a rainha-mãe, continuando com a sua obra social e de beneficência, vive uma existência mais discreta e apagada. Foi ainda Grã-Mestra da Ordem de Santa Isabel e viria ainda a receber a Grã Cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, a Ordem das Damas Nobres de Maria Luísa de Espanha, e a ser presidente honorária de muitas corporações e órgãos de beneficência do reino. Quando, a 1 de Fevereiro de 1908, num atentado perpetrado pela Carbonária, morrem o seu filho D. Carlos I e o seu neto, D. Luís Filipe, a velha rainha cai em agonia e dor. Durante o reinado do seu outro neto, D. Manuel II, viveria sozinha, esquecida, talvez um pouco debilitada mentalmente pela perda do seu filho e neto, pois costumava regar as flores do tapete do seu quarto, na Ajuda. Depois do golpe de 5 de Outubro de 1910, a rainha acabaria levada para Mafra, para se juntar ao neto deposto, e com ele embarcaria rumo ao exílio, que passou em Turim, na sua terra natal, e onde viria a morrer em 1911.
Sepultada na Basílica de Superga, em Turim, aguarda o cumprimento da sua última vontade, expressa no seu leito de morte, um leito que mandou que se virasse na direcção de Portugal, na direcção da terra e do reino que aprendera a amar, a ter por seu, e onde fora feliz toda uma vida, ao lado dos seus filhos, e do seu querido Luís, para os braços do qual desejou voltar, sendo sepultada do seu lado, no Panteão de São Vicente de Fora em Lisboa. Era esta a sua última vontade quando expirou, a 5 de Julho de 1911, com a idade de 63 anos. Aguarda ainda o satisfazer do seu desejo de morte, um desejo que apenas tem sido empecilhado pela falta de vontade política de muitos governos e, infelizmente, da preguiça e desleixo de alguns indivíduos que, dizendo-se monárquicos, nada fazem para que o Estado Português faça voltar à Pátria o féretro da sua penúltima rainha. Esperemos que o actual Governo, na pessoa do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, supostamente monárquico, tenha essa sensibilidade e essa coragem, coisa que, infelizmente, duvido que aconteça.
Filipe Manuel Dias Neto
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