terça-feira, 22 de novembro de 2011

COMO A IGREJA CRIOU A EUROPA

por
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt 


14 Janeiro 2008

Como os debates da Constituição Europeia e Tratado de Lisboa mostram, a Europa vive uma grave crise de identidade. A origem profunda está num antigo mito que o volume A Vitória da Razão (Random House, 2006; Tribuna da História, 2007) do grande sociológico da religião Rodney Stark se esforça por destroçar. O subtítulo indica-o claramente: "Como o Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico no Ocidente."

Esta ideia não surpreende. Dado que a Europa criou os valores da sociedade moderna e é uma zona cristã, seria muito estranho não existir uma relação estreita entre esta origem e aqueles efeitos. Apesar disso é preciso afirmá--lo, porque segundo a tese comum, a Igreja manteve o continente na obscuridade e miséria durante séculos até que a emancipação, com o Humanismo e Iluminismo, permitiu a ciência, liberdade e prosperidade actuais. Esta visão, divulgada por discursos, livros de escola e tratados de História, é simplesmente falsa.

Pelo contrário, a Igreja Católica, vencendo o paganismo obscurantista e civilizando os bárbaros, foi uma poderosa força dinâmica, estabelecendo os valores de tolerância, caridade e progresso que criaram a sociedade contemporânea. A Idade Média, conhecida como "Idade das Trevas", foi uma das épocas de maior de-senvolvimento e criatividade técnica, artística e institucional da História.

Os filósofos humanistas e iluministas posteriores repetiram, em boa medida, ideias medievais. Esta tese está longe de ser original (ver, por exemplo R. Pernoud, 1979, Pour en Finir avec le Moyen Age, Ed. du Seuil; S. Jaki, 2000, The Savior of Science, William B Eerdmans Pub. Co; T. Woods, 2005, How the Catholic Church Built Western Civilization, Regnery Pub.), mas continua oculta debaixo do persistente mito.

As razões desse engano são muito curiosas. Como explica Stark, todas as ditaduras exploram o povo para criar obras grandiosas à magnificência dos tiranos. Foi assim Roma e os reinos orientais. Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem dos ditadores. Assim as realizações da Idade Média resultaram em melhorias da vida das aldeias, não em monumentos que os renascentistas poderiam admirar. Por isso esses intelectuais posteriores, nos seus gabinetes, desprezaram uma época sem mausoléus, enquanto louvavam as tiranias de que só conheciam a arquitectura e erudição.

Os avanços conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras, arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio, carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações medievais. Em todos estes avanços, e muitos outros, têm papel decisivo mosteiros, conventos e escolas da catedral, bem como a confiança da teologia cristã no progresso, contrária à de outras culturas.

Mais influente, nos séculos XI e XII em Itália nasceu o capitalismo (c. IV), sistema que suporta o desenvolvimento, e que tantos ainda julgam ter origem oitocentista e protestante. A prosperidade mercantil e bancária então conseguida gerou verdadeiras multinacionais que promoviam a manufactura e comércio na Europa saída do feudalismo. Depois a peste negra, a guerra e os déspotas iluminados, retornando à pilhagem clássica, destruíram esse florescimento e levaram os filósofos tardios a pensar ter descoberto o que os antepassados praticavam.

Nessa reconstrução perderam-se alguns elementos centrais da versão católica inicial. Por exemplo, no século XII, "cada vez que faziam ou reviam um orçamento era criado, com algum capital da empresa, um fundo para os pobres. Estes fundos aparecem registados em nome 'do nosso bom Senhor Deus' (...) quando uma empresa era liquidada, os pobres eram sempre incluídos entre os credores" (p.167).| 

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