quinta-feira, 3 de março de 2011

S.A.R. D. DUARTE - DESCOLONIZAÇÃO: TANTOS OS PROBLEMAS QUANTO OS TERRITÓRIOS (I)


- Falámos múltiplas vezes até agora da Nação intemporal, da História da tradição. Como é que sente estas realidades quando pensa nos países de língua portuguesa, que indiscutivelmente fizeram parte da nossa História e com os quais se mantêm grandes afinidades culturais a começar pela fortíssima afinidade da língua? – Já referi o assunto antes. O “Império” autoritário, em que os “reinóis” mandam e desmandam nos outros... passou. Teve também aspectos gloriosíssimos! (Tanto assim que estamos em plena comemoração dos Descobrimentos, dos quais os primeiros tempos do Império são indissociáveis). Mas a História levou-o. Agora, de um Portugal grande, que fosse de todos e que cada vez deveria ser mais partilhado, fraterno, igualitário, livre... desse projecto... do fracasso desse projecto, ficou uma “mágoa sem remédio”, para usar as palavras de Camões.
Engolido na luta feroz entre os super impérios mundiais e submerso em banhos de sangue e sofrimento indiscritíveis, quem não sente que o seu desaparecimento rasgou irremediavelmente um pedaço do nosso coração? A nossa acção colonial teve atrasos, injustiças, erros graves (e muito graves). E estes encontram-se em todos os séculos, é claro! (Estou a lembrar-me, por exemplo, da verdadeira catástrofe que representou a expulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal, medida que praticamente aniquilou o ensino de todos os níveis em todo o espaço português!). Apesar de tudo isso quase conseguimos manter o rumo de uma aliança humana e antiga entre “povos fracos” e, no fundo, amigos e irmãos, serem problemas de raça... Falhámos por um pouco. Acho que a fraternidade e a tolerância ficaram mais pobres, num mundo infelizmente delas tão carecido!
- Conhece bem as antigas colónias? – Conheço razoavelmente esses países. Alguns esquecem que fui a África integrado na Força Aérea e mais tarde, como civil, colaborei em programas de “Extensão rural”. Não o fiz com espírito fechado e radical. O tempo que passei em África correspondeu a uma meditação e uma constante preocupação com o problema que (sentia profundamente) do futuro da relação entre Portugal e os territórios de além-mar. Como se poderia desatar aquele nó que parecia cego? É indiscutível que a aliança de Portugal com aqueles povos estava sendimentada em séculos de convivência. Convivência com defeitos, repito, mas que, apesar de tudo, tinha levado àquelas partes do mundo algum acréscimo de civilização e de bem-estar material (embora muitas vezes insuficiente) e, porque não dizê-lo, de justiça. As injustiças da colonização portuguesa eram, apesar de tudo, menores do que as injustiças dos tempos em que, sem os portugueses presentes, as tribos locais se enfrentavam nas mais cruéis e sanguinárias guerras e matanças. Isto pode “soar mal” a muitos ouvidos... Mas corresponde a uma minha profunda convicção, que declaro sem complexos. Por outro lado a descolonização pura e simples, a retirada portuguesa “sem mais”, parecia-me que, inevitavelmente, conduziria a banhos de sangue e desastres sem nome. E as pessoas com quem falava, os contactos que ía fazendo, permitiriam-me perceber que era falsa a ideia de que nas guerras africanas se afrontavam pura e simplesmente a direita portuguesa e o comunismo internacional. Não há dúvida de que eram essas duas forças os grande motores da luta. Mas chamava-me muito a atenção a existência de outras, de outros agrupamentos de pessoas, de grupos que seriam o embrião de partidos que apontando, decerto, para a auto-determinação e, nalguns casos, para a independência, tinham posições intermédias, conciliatórias, não totalitárias, abertas à obra dos portugueses, não anti-portuguesas em suma. Era absolutamente necessário promover com urgência esses grupos, essas correntes para que se pudesse sair pouco a pouco da crispação da guerra para a descripação da paz.

- Mas que forma poderia revestir uma ligação final de Portugal a estes territórios? – Sou dos que pensam que houve em Portugal, além de outros, um erro fundamental no que respeita ao Ultramar: foi o de considerar “o problema ultramarino” como único e indivisível. Ora acho que, pelo contrário, haviam tantos problemas quanto os territórios do Ultramar! Havia que resolver caso por caso, sem se considerar (como foram a doutrina e a política oficial), que a “negociação” como o “adversário” numa frente de guerra destruíria moral e politicamente os fundamentos da posição portuguesa e até a sua capacidade de lutar noutros territórios. Posso, é evidente, estar enganado. Mas, desde muito novo acreditei que era necessário resolver cada passo por si. E, note, sempre pensei que haveria que encontrar soluções específicas, até dentro das grandes unidades geopolíticas. Ainda hoje pergunto, porque é que Cabinda, que tem uma cultura própria bastante avançada, específica, e uma consciência nacional das mais apuradas que há em África, porque é que Cabinda e os cabindas haviam de ser um mero distrito de Angola? E outros exemplos se poderiam encontrar: a ideia de considerar que a Guiné e Cabo Verde constituiam “um todo”, era por tal forma contrária às realidades que não resistiu à pressão das mesmas! Nesse período da minha juventude passado em Angola, no serviço militar, procurei cumprir da forma mais correcta que me foi possível, não deixei de me preocupar continuadamente com uma perspectiva ampla que não passava manifestamente pela ideia de uma vitória militar a todo o custo.

- Então passava por onde? Nem a vitória militar... nem descolonização imediata...  Passava acima de tudo e antes de mais, por defenir claramente programas e horizontes caso por caso. Programas e horizontes abertos ao mais largo debate. Em Portugal. No Ultramar. Com os nossos aliados. Com as Forças Armadas! Tudo se deveria ter feito para impedir a ruptura militar! Horizontes e debates que se inserissem, é certo, nas perspectivas da auto-determinação mas sem nunca se perder de vista a grande tradição portuguesa de integração, de miscigenação, de abertura entre os povos, da criação de laços multi-raciais, do anti-racismo, e de uma caminhada (repito) que muitas vezes lenta e imperfeita!) para degraus sucessivamente superiores de maior civilização e de maior justiça. Muitos conhecem as circunstâncias em que saí de Angola. Com cortesia, o governo a que presidia Marcelo Caetano expulsou-me. É preciso dizer que eu promovi a oranização de uma lista alternativa às eleições para a Assembleia Nacional portuguesa, que reunia portugueses de várias raças e opiniões. Na maioria eram africanos, e todos eram favoráveis a uma evolução para a democracia e a uma maior justiça social, nunca pondo em causa a sua nacionalidade portuguesa. A médio prazo propunham o estatuto federal para o conjunto dos territórios portugueses de então (até admitindo uma capital federal em Nova Lisboa). Saí de Angola sob uma pressão a que não podia resistir. O meu Pai ainda era vivo. Tentou invocar o direito que eu tinha, como qualquer outra pessoa, de trocar ideias, de falar com as pessoas contra as quais não havia, em princípio, qualquer acusação. Mas foi tudo em vão. Tive de regressar. Deixei todavia lá uma parte pequena mas muito importante da minha juventude. Fiquei muito ligado sentimentalmente a amigos, a companheiros, a pessoas com os mesmos ideais.

(Extensão Rural - Angola)
- E mesmo depois das independências, os países agora chamados de língua oficial portuguesa nunca saíram do centro das suas atenções? – Pura verdade. É pública e notória a preocupação que tenho com Timor. Mas noutros países (designadamente em Moçambique e em Cabo Verde), tenho mantido continuamente contactos e penso que não sou mal recebido em nenhum deles. A propósito conto-lhe um detalhe curioso, não conhecido do público. Recentemente recebemos da Fundação Dom Manuel II uma pequena instituição de solidariedade social que foi criada pela última Rainha de Portugal, Dona Augusta Victória, e de que o Duque de Bragança é, por inerência, o Presidente), um pedido do Presidente do Município da cidade da Beira, em Moçambique. Dizia ter descoberto que a cidade se chamava “Beira” em homenagem ao Príncipe da Beira, Dom Luiz Filipe, que tinha visitado aquando da sua conhecida visita aos territórios do Ultramar. E, assim sendo, fazia um pedido à Fundação Dom Manuel II... É capaz de adivinhar qual?

- Pedia um subsídio, uma biblioteca, uma bolsa de estudos...? - Não. Pedia um retrato do Príncipe da Beira, Dom Luiz Filipe, que tinha dado o nome à cidade. Não lhe posso ocultar que entre mim e os meus colaboradores na Fundação Dom Manuel II, esse pedido fez passar um momento de emoção...

- Mas as suas intervenções mais espectaculares, se assim posso dizer, têm-se reportado sobretudo a Timor? – Sem dúvida. Há quem diga que a situação a que Timor chegou é da responsabilidade de Portugal. Que o governo de Lisboa mandou a nossa tropa e a nossa administração sair, numa tentativa para entregar Timor a um partido de tendência marxista. Que na sequência dessa nossa retirada, os indonésios não toleraram a perspectiva de um enclave pro-marxista no seu território. Que por isso, invadiram. Os culpados de tudo seríamos nós. Não teríamos por tanto, o direito de dizer nada e devíamos, pelo contrário, mantermo-nos envergonhadamente calados. Não penso assim. Se um governo em Portugal cometeu quanto a Timor um erro (e acho que efectivamente, cometeu um crime), isso não significa que os portugueses tenham sempre ficado obrigados a calar-se sobre a matéria. Assiste ao povo de Timor, como as Nações Unidas já reconheceram, inquestionável direito à autodeterminação. Tenho-me batido sistematicamente, e na modesta dimensão das minhas possibilidades, para que esse direito possa ser exercido. Pessoalmente estou convencido de que podendo autodeterminar-se, existiria uma possibilidade de os timorenses optarem por manter uma ou outra forma de ligação a Portugal. Como sabe, as grandes potências coloniais de outrora, mesmo depois da descolonização, continuaram a administrar (sublinho: por vontade das próprias populações), múltiplos territórios através do mundo. Lembre-se do ministério francês popularmente chamado "dos Dom-Tom", (abreviatura das expressões "Départment d'Outre Mer/Territoires d'Putre Mer").

- Acha que, se a descolonização o tivesse permitido, poderia hver hoje "Dom-Tom's" portugueses? - Pelo menos nos territórios onde não havia guerra, a auto-determinação poderia ter conduzido a soluções de articulação com Portugal (como aconteceu com tantos outros ainda sob administração francesa, americana, holandesa, etc.). Acho que quanto a este ponto se reflecte, de novo, a circunstância de se ter tratado do problema do Ultramar como "um todo", sem ter havido a subtileza de se entender (antes ou depois da evolução), que cada território merecia uma consideração calma, ponderada e específica. A construção encontrada para os Açores e para a Madeira, que são Regiões Autónomas com órgãos políticos e administrativos próprios dentro da unidade nacional, poderia porventura, ter sido aceite pelo povo de Cabo Verde? Certamento pelo de Timor? Quem sabe se pelo de Cabinda (se tivesse havido a coragem de considerar Cabinda como entidade diferente de Angola)? Enfim, sobre a descolonização também se tem falado "milhares de horas" e nem eu tenho opiniões particularmente originais. As que aqui manifesto correspondem apenas a uma síntese. São sinceras e estaria pronto a debatê-las em qualquer instância. Acrescento apenas que a Monarquia poderia ajudar, certamente, a manter um "Comonwealth" à portuguesa que (muito mais pequeno do que o inglês, aliás hoje com problemas de coesão), se poderia aproximar mais da situação que existe na Holanda: territórios pequenos, dotados de graus amplíssimos de autonomia, continuam a ter como Rainha, a Rainha da Holanda, mantendo-se assim uma ligação profunda àquilo que foi a fonte de uma parte importante da sua civilização e da sua cultura.


- Gostava de lhe falar de novo sobre aspectos da sua educação. À medida que o tenho ouvido, ao longo destas conversas, muitas vezes tenho pensado que não há nada de comum ou quase nada, entre a ideia que muitos fazem de um rapazinho educado em Coimbra por homens predominantemente virados para o passado e esta pessoa lúcida, moderna e aberta que está na minha frente. A sua educação foi realmente uma educação reaccionária? E se foi como é que evoluiu?  A minha educação não foi uma educação reaccionária! Foi uma educação em que entraram vários factores, dos quais assinalo os principais. Primeiro, o profundo portuguesismo e o bom senso dos meus Pais. Dir-me-ão que o meu Pai tinha sido educado na Áustria e que a minha Mãe era brasileira. Não há dúvida. Em nada, todavia o portuguesismo dos descendentes de Dom Miguel foi alterado, pela circustância de terem vivido no exílio... (Note que os portugueses da emigração são geralmente os mais patriotas! Quanto mais os que foram vítimas de tão injusto exílio!). Por outro lado, o meu Pai era um homem de grande bom senso. Devo-lhe uma "educação de bom senso" que me foi preciosa. A minha educação passou pelo Colégio Militar e pelos Jesuítas (Santo Tirso). Duas grandes instituições cujas escolas de formação de carácter e pensamento me marcaram. A ideia de que vivia em S. Marcos rodeado de professores monárquicos é uma fantasia posta a correr por algumas pessoas! Conversei, sim, com muitas das grandes figuras do pensamento monárquico da minha juventude. (Lembro, designadamente e entre outros, verdadeiros amigos como o Prof. Pacheco de Amorim e o Dr. Henrique Ruas...). Aprendi a ler os autores monárquicos e integralistas. Li, toda a vida, muitíssimo. E pude reflectir, exercitar ao longo dos anos o espírito crítico, chegar à minhas próprias conclusões.

Do livro, Conversas com o Duque de Bragança, de Manuela Gonzaga - "O passado de Portugal no seu futuro" (1995)

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