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A corrupção babélica da língua écoisa bem diferente das transformações inerentes à própria evolução vital. A formaçãoorgânica de novos vocábulos, novas acepções acrescidas às de antigo uso, arcaismosque remoçam, a adaptação de vozes expressivas e precisas, alterações sintácticasque favorecem a harmonia e a clareza, tudo isso deixa a salvo a integridade do idioma:é o movimento da sua própria evolução. Mas o que não pode tolerar-se é a formaçãodas palavras castiças, o abuso do estrangeirismo estridente e inútil, o emprêgoabsurdo das preposições, a introdução de sons estranhos à música da nossalíngua, — “a que primeiro praguejou com a tempestade oceânica e a primeira quetraduziu a alma das imensas distâncias - a saudade”...
É do vosso aplaudido João Ribeiro(não ignorais) esta bela frase onde, como nos búzios o mar, o génio puro doidioma pátrio longamente ressoa.
Língua Portuguesa, trino de aveno fino azul e trovão que abala o céu; meiga e brava, que ora se roja como asondas na areia, - quando soluça e chora, ora como as ondas se alevanta e encrespa,-quando ruje, amaldiçoa ou ameaça!
Veio-lhe do arfar das naus acadência lânguida, e o mar lhe pegou o cheiro que tem a algas e sargaço. Fogosacomo corcel de batalha, é dócil como o vime. Urdida na penumbra das ramadas e bordadasob laranjeiras em flor, é branda e cândida, boa para confessar baixinhosegredos do coração e o abrir e abrasar em arroubos místicos…
Língua em que o Sol se namorou danévoa e criou a neblina para ensinar o gôsto musical das palavras, que mais doque dizem, deixam adivinhar… Língua de esmeraldas e madrepérolas, a mais ternaentre todas e a mais linda, ¿como não amar-te?
Não é o idioma de um povomercadoria que se lhe ponha à escolha para pegar ou deixar; històricamenteassociado o povo à formação da língua, ela é parte consubstancial do seupróprio ser. Quando a linguagem se vicia de tal modo que ameaça corromper-se e tornar-sedialecto, necessário é voltar à canteira maternal, às aldeias e aos montes, àrústica plebe, aos livros vélhos e esquecidos.
A língua em que os Trovadores dosCancioneiros cantaram as suas coitas deamor, soluçou Bernardim suas pungentes saüdades e os chistes de Gil Vicentesão ainda lição e exemplo; a língua em que Fernão Lopes presentiu a nova idadedo mundo e Azurara pôde Ouvir os Altos Infantes diante dos muros de Ceuta; a línguaatravés da qual Tomé de Jesus e Heitor Pinto deixam entrever o Céu e João deBarros e Diogo do Couto, por entre rufar de tambores, estrondos de trombetas e bombardas,tinir de lanças e adagas, amostram o Oriente a arder num perfumado braseiro de enfurecidaglória, - toda a azafama dos Descobrimentos, trabalhos do mar, perigos da terra…;a língua em que Bernardes transforma as palavras em beijos para falar de Jesuse Vieira se atreve a reprender a Deus senão ajuda bem os Portugueses na defesados bastilhões brasileiros, ei-la agora, tendo rodeado o mundo e por êle se repartidoem pedaços, desde Ceilão à Polinésia, desde Malaca ao Japão, que serena ealtiva, ao jeito de Camões, !”na quarta parte nova os campos ara”!
Pelos séculos fóra, para além damorte, devia comemorar-se quotidianamente sobre o altar o milagre da fala quenos irmana. Assim o quis António Cavide, que serviu a El-Rei Dom João IV comgrande confiança e foi seu Mantieiro e Escrivão da Câmara, na cláusula daescritura de doação feita em 1667 aos Eremitas de Nossa Senhora da Graça,estabelecendo e exigindo para sempre que em cada dia do ano fôsse rezada umaMissa por todos os que falarem a língua portuguesa.
¿Onde houve já idioma quemerecesse tão religioso carinho? ¿Onde se encontra mais comovida confissão doimortal encanto da nossa linguagem, da solidariedade eterna que ela entre nósestabelece?
Extracto de Conferência realizada na Faculdade de Direito de São Paulo (Brasil)
Luis de Almeida Braga in Paixão e Graça da Terra, 1932, Livraria Civilização
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