No dia 23 de Outubro de 1771, os restos mortais de Santa Joana foram trasladados para o túmulo desenhado por João Antunes. Monsenhor João Gaspar assinala com este texto o tricentenário de um acontecimento marcante na então vila de Aveiro
Em 1595-1597 e em 1599-1602, exerceu o cargo de prioresa do Mosteiro de Jesus, em Aveiro, a madre Inês de Jesus ou de Noronha, senhora activa, disciplinadora, renovadora e empreendedora. A sua nobreza de carácter não lhe consentiu que os despojos da Princesa D. Joana continuassem guardados em modestíssima osteoteca, embora patente no meio do coro de baixo, para onde haviam sido transferidos à volta do ano de 1578, depois de exumados da campa rasa. Por 1602-1603, o caixão interior, que continha as relíquias, foi encerrado noutro cenotáfio, de forma sepulcral, de maior grandeza e artifício, além do material ser mais condigno – ébano, coberto e ornado por marchetes de bronze dourado. O ataúde, ostentando o brasão da Princesa, foi colocado no mesmo lugar, agora sobre um supedâneo de pedra de Outil, e cercado de grades torneadas, com semelhantes ornatos de bronze.
Decorrido pouco mais de um século, após um minucioso processo canónico nas respectivas instâncias da Santa Sé, o papa Inocêncio XII, em 04 de Abril de 1693, mandou publicar o breve da beatificação equipolente “Sacrosancti Apostolatus cura”; por tal documento foi oficialmente confirmado o culto imemorial de Santa Joana. Na sequência do faustoso acontecimento, logo sucederam celebrações festivas em vários lugares. O Paço Real, em Lisboa, por ordem de el-rei D. Pedro II, foi dos primeiros a dar exemplo. Em Junho, no Mosteiro de Jesus, D. João de Melo, bispo de Coimbra, que apelidava a Princesa como a “sua Santa”, celebrou Missa pontifical, prometendo participar nas solenidades da beatificação, que viriam a realizar-se no ano seguinte de 1694. E assim aconteceu. De Coimbra vieram a Aveiro os cantores da Capela da Catedral para o oitavário, que culminou, em 12 de Maio, com a faustosa celebração da Eucaristia e com uma imponente procissão; nesta foi levada a primeira imagem da Santa Princesa, em bela escultura em madeira, para a qual se levantou um sumptuoso altar lateral no interior da igreja de Jesus.
D. Pedro II paga
El-rei D. Pedro II, após a beatificação de Santa Joana, ordenou a renovação e o aformoseamento do coro de baixo do Mosteiro, onde os seus restos mortais haviam sido sepultados, e mandou que se fizesse um túmulo condigno, a fim de se substituir o anterior. Para a sua concepção, foi escolhido o notável arquitecto lisbonense da Casa Real, João Antunes (1643-1712), cujos honorários foram pagos pelo próprio monarca. A obra, iniciada em 1698, terminou em 1709. No essencial, o sepulcro, assente sobre um bloco de pedra, é uma arca rectangular com base e cornija, cuja separação é feita nos extremos das faces por mísulas alongadas e finamente trabalhadas. São vários os elementos decorativos e os símbolos religiosos, que enriquecem o mausoléu em cada uma das quatro faces, como a cruz, a coroa de espinhos, a palma, o lírio, as flores e as ramagens. Em baixo e aos cantos, quatro querubins, alados e de braços erguidos, seguram-na e transportam-na ao céu e a fénix, no centro, aponta o renascer «ex cínere»; como remate superior emerge, também suportado por anjos, o brasão português, encimado pela coroa real, entre volutas. Magnífico e admirável exemplar de entalhados multicolores de mármore, embutidos com suma delicadeza e perfeição, é no seu género uma peça incomparável no embrechado, equilibrada no desenho e adequada ao barroco nacional.
Foi o bispo de Coimbra, D. António de Vasconcelos e Sousa, quem, no dia 10 de Outubro de 1711 procedeu ao reconhecimento canónico das relíquias de Santa Joana, entre mostras de muita piedade. Nos dias seguintes, houve tríduo de Missas, pregações e festas. No dia 23, após a Missa pontifical do prelado, realizou-se um magnífico cortejo, com danças, charamelas e trombetas, que deu volta ao claustro conventual e percorreu algumas artérias da vila de Aveiro, passando junto à secular igreja matriz de S. Miguel e defronte da Casa da Câmara Municipal e parando, durante uns instantes, no Convento de S. João Evangelista, das irmãs carmelitas. À frente iam os frades dominicanos, provenientes de várias partes, depois os carmelitas, os franciscanos e muitos eclesiásticos e nobres; ao todo, perto de quinhentos clérigos, por ter o bispo ordenado que concorressem os das freguesias circunvizinhas. Logo após, alçava-se a cruz da Sé, sob a qual os cantores de Coimbra e os músicos da Capela Real, solicitados de Lisboa pelo prelado, entoavam salmos e hinos; os membros do Cabido caminhavam com solenidade incomum. Conduzido debaixo do pálio, a cujas varas pegavam seis cavaleiros do hábito de Cristo, o riquíssimo andor com as relíquias era levado pelos abades mitrados dos mosteiros beneditinos de Santo Tirso e de Coimbra e dos cistercienses de Seiça e do Espírito Santo ou de S. Paulo de Coimbra, por não haver bispos disponíveis nas Dioceses limítrofes. À passagem, a Infantaria militar, em duas alas ao longo das ruas, salvava com repetidas descargas. Atrás, seguia o antístite, com os seus acólitos, o Senado Municipal e uma tão grande multidão de pessoas que as Justiças não podiam conter. Recolhida a procissão no Mosteiro de Jesus, colocou-se o caixão dentro do túmulo, que logo se fechou.
Candelabros roubados pelos franceses
Posteriormente, o sétimo duque de Aveiro, D. Gabriel de Lencastre Ponce de Leão, por escritura lavrada em 03 de Janeiro de 1733, doou e mandou entregar à prioresa do Mosteiro de Jesus cinco candelabros de prata para serem colocados junto do sepulcro da Santa Princesa e neles se acenderem velas. Tais lampadários substituíram os quatro candelabros de cristal que, algum tempo antes, ofertara o mesmo devoto para idêntico fim. Conforme o teor do documento notarial, os candelabros de prata eram lavrados a cinzel; o maior tinha duas ordens de luzes (seis luzes a de cima e doze a de baixo); outros três tinham uma ordem de doze luzes; e o mais pequeno tinha uma ordem de seis luzes. Em 1808, «esta preciosidade artística foi levada ou, para melhor dizer, roubada pelos franceses» – informa o aveirógrafo Marques Gomes.
No decorrer da história milenar do nosso burgo, este facto significa um acontecimento marcante, singularmente vivido em 23 de Outubro de 1711 com ‘pompa e circunstância’. Na ocorrência do seu terceiro centenário, nós não poderíamos deixar de assinalá-lo num sentido de gratidão à celeste Padroeira de Aveiro que – como ela prometeu antes de falecer - «eu hei-de lembrar-me desta Casa e da Vila, onde quer que a minha alma estiver».
João Gaspar
Fonte: Correio do Vouga
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