Público 2011-04-14 Helena Matos
O congresso do PS em Matosinhos só podia ter corrido como correu: ali não houve nem podia haver sombra de política
Isto está a acontecer-nos a nós e não é nada como nos tinham contado. Ninguém nos diz que estamos a fazer História, não há turistas que venham de longe para ver esta nossa revolução e contudo amargamo-la: Portugal vive hoje os dias do fim do chamado socialismo democrático. Ou seja, dessa espécie de compromisso entre as liberdades dos cidadãos e um Estado que se vê como um grande cobrador de impostos e distribuidor da riqueza.
E esta não é uma pequena revolução. Infelizmente é uma revolução sem grandeza - chegamos a ela não pelo desejo de mudança mas sim porque não há dinheiro para sustentar o Estado -, sem símbolos, a não ser que por símbolos se entendam aquelas malditas linhas do juro a subir e as do rating a descer e sem narrativa, pois o que nos contaram sobre revoluções passa por muros a serem derrubados, multidões na rua festejando a liberdade e presos políticos a saírem das cadeias.
Na verdade nós não queríamos mudança alguma. Se pudéssemos, continuaríamos sempre com as nossas progressões automáticas, com os subsídios e abonos crescentes e com as autarquias transformadas nos maiores empregadores da região. Tudo e todos presos a essa cadeia de repartição de serviços e bens a que doutro modo, segundo o socialismo vigente, os portugueses não teriam acesso.
Afinal há décadas que os líderes da direita, do centro e da esquerda reduzem as divergências entre si às matérias da divisão ou, melhor dizendo, ao que cada um deles se propõe fazer com o dinheiro dos nossos impostos para o efeito despersonificado em dinheiro do Estado. A produção de riqueza é constitucionalmente vista com desconfiança e tem sido menosprezada quando não achincalhada pelas elites culturais e políticas. Grandes empresários como Alfredo da Silva ou Champallimaud são menos valorizados e conhecidos que os autores de qualquer quadro, poema ou filme de vigésima categoria.
Mas é sobretudo perante os pobres que aspiram a deixar de o ser pelos seus meios, e que portanto não esperaram que o Estado distribuidor faça deles menos pobres, que mais se assanha o discurso dessa nomenclatura de sociólogos, jornalistas e deputados com ordenado assegurado e que nunca criaram um emprego na vida, garantindo que aqueles empresários não têm rasgo, que só sabem fazer contas de merceeiro e que as suas empresas não passam duma estrutura de vão de escada. Aquilo que devia ser motivo de elogio - o ser capaz de criar quanto mais não seja o seu posto de trabalho num vão de escada e o ser prudente nos gastos - tornaram-se pretextos para a crítica e o escárnio daqueles que, como boa parte destas elites, são frequentemente sustentados pelo Estado e que corporativamente amplificam em eco a ideia do Estado enquanto grande cobrador/divisor.
Esta ilusão de que a justiça social e o combate às desigualdades se fariam através de um Estado cada vez mais tentacular e controlador teve o seu epílogo não no dia em que foi oficialmente formalizado o pedido de ajuda externa - há um ano que dependíamos dessa ajuda - mas sim quando se pôs a hipótese de alguns organismos do Ministério da Administração Interna não estarem a entregar ao Estado a retenção de IRS dos seus funcionários públicos e de o Fundo de Capitalização da Segurança Social poder vir a comprar ainda mais títulos da dívida portuguesa.
Em resumo, sobre o socialismo abate-se a maldição de Cronos/Saturno: quis criar uma Idade de Ouro e acabou a alimentar-se dos seus filhos com medo de ser destronado.
Por outras palavras, para ser socialismo, o socialismo ou tem dinheiro para distribuir ou é cada vez menos democrático, pois só com a desvalorização da democracia se conseguirá manter a sociedade em permanente estado de exaltação maniqueísta, distraindo-a do essencial. Paulatinamente, essa desvalorização da democracia está a ser feita oficialmente em nome do país, mas na prática para salvar os responsáveis por essa fraude que se chamou "vida para lá do défice": as eleições que são em democracia a forma natural de resolver as crises passaram a ser vistas como um incidente que pode aumentar os juros. As divergências políticas passaram a ser apresentadas como sinónimos de crispação e mais crispação que pode baixar o rating. O apurar das responsabilidades dá um sinal de desunião que assusta os nossos credores... Enfim, o funcionamento da democracia começa a ser apresentado como um factor de perturbação.
Se tivermos isto em conta, percebe-se que o congresso do PS em Matosinhos só podia ter corrido como correu: ali não houve nem podia haver sombra de política. O que aconteceu naquele pavilhão foi um encontro de motivação para um grupo de funcionários, muito deles ocupando cargos de nomeação, e fornecedores de serviços ao Estado. Estes, reunidos em torno do seu chefe, acertaram a estratégia para continuarem a assegurar que controlam a máquina estatal.
Ou, mitologicamente falando, que eles, que têm tido como fonte de rendimentos cargos em que nos prometem uma Idade de Ouro, cheia de carros eléctricos, TGV, cheques-bebé e computadores à borla, estão dispostos a quase tudo para não serem destronados. Ensaísta
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