"Na hora do desastre, só o enraizamento na história pode dar a confiança necessária para transformar o presente" - Ivan Illich
DA COMUNA AO SINDICATO E DO SINDICATO À COMUNA por TERESA MARIA MARTINS DE CARVALHO
Penso que o homem não é capaz de formar no seu espírito projecto mais vão e mais quimérico do que pretender, quando escreve sobre qualquer arte ou qualquer ciência, escapar a toda a espécie de crítica e grangear a aprovação de todos os seus leitores. - La Bruyère
I - A COMUNA
A multidão não deixa de ser multidão mesmo se estiver bem alimentada, bem vestida, bem alojada e bem disciplinada. - T. S. Eliot
O povo é o conjunto de uma multidão racional, associado na comunhão concorde das coisas que ama. - Santo Agostinho
I
Comuna foi a palavra lançada a desfavor dos ventos e marés dos socialismos abundantes depois do 25 de Abril e eis que ficou enigmática e brilhante como estrela nova em céus desvendados, portadora de múltiplas ressonâncias, tanto revolucionárias como longa e medievalmente tradicionais.
E esta palavra, assim aparentemente paradoxal que sugere subversão, parece acordar também o eco longínquo de certa liberdade julgada há muito extinta no altar das massas e do Estado: a liberdade de cada um.
Ao mesmo tempo desperta em nós o desejo e as forças de um amor comum por algo de comum, ainda indefinido mas perto de nós, alcançável, interpretado e açambarcado por sistemas e partidos mas que os ultrapassa sempre, os gasta e corroí porque nasce a cada momento da liberdade de cada momento.
II - O QUE É A COMUNA
Nada queremos da república dos burgueses nem da monarquia dos plutocratas! - António Sardinha
Não há meio termo: a comuna ou será soberana ou sucursal; ou tudo ou nada. - J. Proudhon
Não nos cabe a tarefa de nos ocuparmos de maneira funda e completa das raízes históricas da comuna, do seu lugar e papel na sociedade anterior à era industrial e sobretudo da sua importância como elemento estruturante do nosso País.
Outros o fizeram com a competência mais que bastante e necessária e a eles recorrerá quem desejar documentar-se mais fartamente.
Precisamos, no entanto, de nos referir embora por alto às suas linhas essenciais para desenvolvermos de modo prudente e claro a reflexão que nos compete aqui e hoje. É sempre preciso começar pelo princípio.
E o princípio foram comunidades há séculos radicadas em vales e montes e ao longo dos rios, com organizações já complexas, pois o aparecimento do homem agricultor tornou automaticamente mais complicada a definição do poder. Anteriormente, aos chefes caçadores ou pastores pouco fora preciso para delimitarem os agregados familiares ou o aglomerado de vizinhança. Mas, em seguida, a atribuição das terras de amanho não se mostrou tão fácil. De todo o malabarismo de contratos, privilégios, direitos, deveres, obrigações, isenções, foros, usos e costumes estabelecidos quer no povo entre si, quer entre este e o dux, o rex ou a Igreja, resta-nos ainda em certas povoações nossas, o sabor ancestral de misteriosas divisões de águas, o uso dos baldios, o cunho de certas romarias e a persistência anacrónica de confrarias.
Mas não olhemos como puro folclore para estas reminiscências. Elas demonstram sobretudo a profundidade da sua razão primeira, que as fez resistir, não só ao «progresso» actual, televisionado ou não, mas sobretudo, através de séculos, às reformas pombalina e liberal, centralizadoras e de administração burocrática.
Esta resistência, este apego aos usos e costumes da «sua terra» constitui no povo português o contraponto à sua visceral e eterna desconfiança para com toda e qualquer disposição governamental. A memória persistente de velhos direitos perdidos e profanados, de uma autonomia antiga criadora de dignidade e de cultura, faz com que a maioria dos portugueses, como notou, com espanto, alguém estrangeiro vivendo entre nós, possua sempre a «sua terra» e que não é normalmente aquela em que se vive, eternos exilados dentro da nossa Pátria, por força das conveniências ou inconveniências dos governos centrais, distribuidores arbitrários, desarmonizadores e tecnocratas, de mão-de-obra e de serviços ao jeito do capitalismo.
III - VIDA E MORTE DA COMUNA
Nós somos livres e o nosso Rei é livre. - Proclamação nas Cortes de Lamego em 1143
Assim instituídas, as Cortes, se não foram o fundamento da liberdade municipal, base da única liberdade verdadeira que, em nosso entender, tem existido no mundo, e talvez a única possível, foram por certo desde essa época uma grande manifestação dela e, até certo ponto, uma garantia da sua conservação. - Alexandre Herculano
Toda a vida medieval portuguesa era um emaranhado de contratos, regalias, corporações, corpos e municípios que tentavam engrenar o poder do Rei com as liberdades de cada comunidade, fosse ela local (município), de corpo social (clero, nobreza, povo) ou de ofício (corporação), e este tecido de vida social não deixava espaços vazios nem para os vagabundos que segundo a lei das Sesmarias já D. Fernando compelia «à batalha da produção».
O medo e a curiosidade são comuns ao homem e ao animal, mas, se neste são reacções momentâneas, a consciência daquele faz nascer a ciência da curiosidade e do medo, a noção da precariedade permanente da existência.
Esta insegurança trágica do ser humano não era então de modo nenhum coberta pelos grupos naturais de interesses comuns de vizinhança, cultivo e convívio. Daí a necessidade de recorrer aos poderosos, sobretudo aos do poder legítimo, isto é, à realeza, cuja legitimidade de origem religiosa dava outras garantias do que o simples conde ou barão.
Pode dizer-se que o homem medieval era um homem sempre integrado. Não havia marginais, nem desocupados, nem desempregados. Esta integração, obra e serviço do Rei, foi a textura fecunda donde nasceram as nações. E se aos nossos olhos modernos apresenta laivos desagradáveis de sujeição, ela foi naquele tempo a única condição de liberdade dentro de uma segurança possível. Mantinha os homens relacionados uns com os outros, em contratos livremente aceites de parte a parte e no jogo dos interesses e direitos, do clero, da nobreza e do povo, o Rei equilibrava-se a si próprio, anulando abusos deste corpo, fazendo prevalecer os direitos deste município ou daquele, protegendo este nobre seu partidário ou aqueles burgueses de quem precisava auxílio. E equilibrando-se a si próprio, trazia em harmonia a nação que se ia consciencializando como unidade.
Feitas as nações, os preceitos idealistas nascidos da Revolução Francesa sacudiram estas inclementes cadeias de privilégios e contratos pois há muito que o poder real se abstinha de reunir as Cortes, isto é, deixara de lado como supérfluo o conselho dos corpos da nação e assumira a responsabilidade absoluta do seu cargo.
E assim a Revolução instalou o homem na sua dignidade de homem só, à moda de Jean Jacques Rousseau, mas ao mesmo tempo que libertava as gentes para a igualdade de uma só lei, deixava que a fraternidade fosse engolida rapidamente pela plutocracia, o poder do dinheiro, que já se vinha opondo ao poder da linhagem ou da terra e encontrava assim caminho aberto.
E os homens libertos de correntes, de contratos e de obrigações, puderam finalmente ficar apenas como mão-de-obra diante do capital. No dealbar da era industrial foi o liberalismo, filho da Revolução Francesa, que inventou o proletário.
IV - COMUNA URBANA E COMUNA RURAL
Na hora do desastre, só o enraizamento na história pode dar a confiança necessária para transformar o presente. - Ivan Illich
IV
Talvez convenha voltar atrás um pouco e considerar os dois tipos de comuna, aquela que de facto encarnou o nome e o plasmou na História, isto é, a comuna urbana dos burgueses, e a outra, a rural, o concelho dos homens bons e vilões.
Foi a primeira que ao enriquecer-se no comércio ou tomando poder com as corporações dos ofícios (não esqueçamos aqui os espantosos privilégios dos burgueses do Porto em relação aos fidalgos que na cidade nem sequer podiam pernoitar...) e sobretudo nas cidades portuárias abertas aos ventos da Índia, carregadas de oiro e dispostas à caldeação rápida de ideias novas que mais conviessem a uma reestruturação da sociedade, correspondente ao novo jogo de forças, foi esta comuna urbana, dizíamos, que perdeu o seu carácter comunitário global e se transformou pouco a pouco em grupos de interesses individuais.
A realeza participou desta preponderância de alguns corpos da sociedade que desorganizava a antiga harmonia e para se manter flutuante por sobre os fidalgos aburguesados e os burgueses afidalgados, acentuou o poder real como direito divino em detrimento da autoridade como serviço. E tornado absoluto, desembaraçando-se das Cortes, o Rei cortou quase completamente a comunicação com os concelhos rurais e as necessidades imediatas das regiões, do povo camponês e do pequeno artesão.
Deste modo se dividiu Portugal em gente da abundância e gente da carência, geograficamente situadas, um litoral exuberante cortando caminho ao interior decadente, as urbes inchando-se euforicamente na nova liberdade de enriquecer ao lado ou quase sempre à custa dos outros.
Mas o absolutismo real não era o Estado totalitário. As comunas rurais decerto já não tinham aos olhos do Rei aquela essencial existência que era preciso guardar, acompanhar, vivificar para que todo o Reino crescesse em 1ìberdade equilibrada, o que tantos cuidados e solicitude lhe merecia e pedia, como mostram até ao séc. XVI e à longa noite filipina as inúmeras disposições legais a seu favor.
O próprio povo disso tinha consciência. A restauração de 1640 ainda foi ele, esse povo que guardava no seu sebastianismo fruste e ingénuo a esperança da liberdade reencontrada na pessoa do Rei escolhido. E embora a partir de D. Pedro II se tenha visto privado de Cortes, ele bem sentia que a nova ordem que a aurora liberal lhe prometia, centralizadora e eficiente, cortando os poderes ao Rei também os cortava às Comunas.
Daqui o aparente paradoxo da devoção tocante por parte do povo pelo Rei D. Miguel que finalmente viria a reunir Cortes à moda antiga (1828), as últimas. Ele, rei absoluto, era ainda preferível como interlocutor à nudez fria e burocrática do código administrativo do Estado moderno.
A última Casa dos 24, a do Porto, foi encerrada em 1834. Tinham acabado as lusitanas antigas liberdades, os contratos, os privilégios, os usos e costumes. Agora não mais havia do que pagar os impostos e receber em silêncio as benesses da civilização.
(...)
publicada por B & N em "Lusitana Antiga Liberdade"
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