Lendo as palavras que se seguem, ficamos a conhecer melhor uma importante parte do que aconteceu naquele distante dia 25 de Abril de 1974, quando “tal como a Primeira República, em 1926, a Segunda caiu de empurrão”*.
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Foi para mim um dia longo e emotivo: às quatro da madrugada, o telefonema dum sobrinho – Bernardo Castelo-Melhor – avisou-me que, de meia em meia hora, o Rádio Clube Português emitia um comunicado do Movimento das Forças Armadas, no qual se falava em liberdade e se apelava à calma e à adesão do povo. Entre cada emissão, ouviam-se canções de José Afonso, de Adriano, de Fanhais, baladas proibidas, todas elas portadoras da esperança da liberdade, do fim da sujeição e do estado ignominioso duma nação privada de direitos.
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Não pude conter a minha impaciência e fui para a rua; também queria ajudar, contribuir para a revolução, associar-me tanto quanto possível ao movimento em curso, e ajudar a rodear o golpe militar da adesão maciça dum povo que queria de novo ser senhor da sua dignidade e do seu destino.
Nas horas que passei no Terreiro do Paço, compreendi a serenidade do ataque e a inércia da defesa. Acima de tudo, pairava o horror a qualquer combate entre irmãos de armas e o cenário da revolução desdobrava-se em afirmações de vontade, em diálogos sem solução e num exame aturado da capacidade e número das forças alinhadas.
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Mas o grande palco da revolução ia ser o largo do Carmo. Pude ver que o Rossio estava totalmente ocupado por forças fiéis ao Governo, bem como a Rua do Carmo e os largos do Camões e do Chiado. A PIDE dominava a António Maria Cardoso e os acessos do Cais do Sodré e Corpo Santo, mas estava fechada com tal medo que, perante gritos hostis dum grupo de rapazes, ceifou dois, que ficaram a ser as poucas vítimas de sangue do 25 de Abril.
No largo do Carmo, estava a força de Santarém e estava sobretudo Salgueiro Maia. Nas longas horas que com ele ali vivi e confraternizei, pude apreciar a tranquila audácia dum homem que, com duas autometralhadoras e centena e meia de recrutas, estava a destruir cinquenta anos de história, de farroncas de força e de poder, mantendo em respeito uma força profissional e adestrada como era a Guarda Nacional Republicana. Salgueiro Maia estava cercado; pelo Rossio quase até ao alto da Calçada do Carmo, pela Rua da Trindade e Largo da Misericórdia, onde se encontravam entrincheiradas as forças da GNR. No Chiado, até aos largos, os blindados hostis da Cavalaria 7, e julgo recordar que também da Cavalaria 2 e Metralhadoras 1. Mas nem sequer um sentimento de dúvida ou de incerteza pairou na praça. Levada pelo sopro da liberdade, a multidão acorria e o quadro do povo expressava ali a vontade da nação contra qualquer veleidade de repressão sangrenta. Maia, audacioso e sereno, pediu-me que falasse ao povo. Fi-lo por duas vezes, uma através dos microfones dum camião da Rádio e, mais tarde, com um megafone, empoleirado na guarita da sentinela do Carmo – imagem de Épinal** da Revolução em que o povo e a tropa se abraçavam para libertar a Nação. A certa altura falei a Maia do cerco potencial em que se achava envolvido e na evidente necessidade de não prolongar indefinidamente a tomada do Carmo, onde Marcelo e parte do Governo se encontravam, guardando com eles o selo da soberania e do poder. Foi então que pude medir a dimensão extraordinária daquele homem. Respondeu-me na calma: sabe, estes homens que eu trago não sabem atirar e o seu manejo de armas é totalmente incipiente; o que você diz também me preocupa, mas pode-me fazer um favor – ficou de vir ter comigo, aqui ao Carmo, a força revolucionária de Estremoz, de Cavalaria 3, que é importante e já cá devia estar. É comandada pelo capitão Ferreira, está atrasada e tenho receio de que, conhecendo mal Lisboa, não saiba o caminho. Parti imediatamente e tive a sorte de encontrar Cavalaria 3 na Rua Castilho. Tomei lugar no carro de comando com o capitão Ferreira e voltámos para o Carmo o mais depressa possível. No Largo da Misericórdia, depois duma conversa de Ferreira com o capitão ou major que comandava a GNR entrincheirada, levantou-se o cerco para nos deixar passar. E mal chegou Estremoz, Maia sentiu-se em posição de enviar um ultimato de rendição ao quartel e lançar dois tiros de aviso à fachada, perante o entusiasmo incontido da multidão que gritava: Está na hora! Viva a Liberdade!
Meu futuro genro, Francisco Ribeiro Teles, hoje secretário da Embaixada de Portugal na ONU, vinha como miliciano com as tropas de Maia – onde só havia voluntários. Confirmou-me, no telhado dum edifício do Carmo onde o fui ver que era verdade a condição de recrutas com instrução quase nula dos soldados comandados por Salgueiro Maia. E desde aí, guardei uma profunda admiração um enorme respeito e uma séria amizade – que sempre se exprime quando se cruzam as nossas vidas distantes – por esse herói tão esquecido e que foi, sem dúvida, como operacional, o elemento-chave da Revolução de Abril.
Fiquei no Carmo até à rendição do Governo. A partir daí, a euforia da vitória inundou Lisboa (…).
* Jornal “A Capital” de 24/04/80, Francisco de Sousa Tavares.
** ”Imagem de Épinal” é uma expressão de origem francesa, aplicada a uma imagem, quando esta assume um significado ingénuo, algo que nos mostra apenas o lado bom de um acontecimento. Francisco de Sousa Tavares refere-se às fotografias que lhe tiraram, quando sentado na guarita do quartel do Carmo, falava com um megafone à multidão.
Publicado por Rui Paiva Monteiro em "Causa Monárquica"
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