sexta-feira, 15 de abril de 2011

QUANDO O PORTO QUIS QUE EM PORTUGAL HOUVESSE MONARQUIA


Não, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910. Não se pode dizer que o rei tenha voltado, mas os que o queriam de volta reinaram entre 19 de Janeiro e 13 de Fevereiro de 1919 – no Norte. Em Lisboa e no Sul, a revolta liderada por Paiva Couceiro não vingou. Passam agora noventa anos sobre o episódio da Monarquia do Norte, que primou pelo caricato – tal como os republicanos, os monárquicos não se entendiam entre si. Mesmo doente, com gripe, o capitão Sarmento Pimentel acabou por restaurar a República

A Monarquia, ao contrário do que possivelmente muitos julgam saber, não acabou em 5 de Outubro de 1910 com a conquista do Estado pelo Partido Republicano e o exílio do rei D. Manuel II e da família real. Em 1919, a 19 de Janeiro, um domingo, pela uma da tarde, voltou a haver Monarquia em Portugal. Não em todo o País, mas no Porto e, a partir daí, por quase todo o Norte do País. A restauração, também tentada em Lisboa, a 22 de Janeiro, falhou no Sul. A Monarquia de 1919 ficou assim a ser a ‘Monarquia do Norte’, existindo acima de Aveiro e Viseu, uma espécie de ressurreição tardia do original Condado Portucalense. Na Europa, a I Guerra Mundial acabara havia dois meses e começava a conferência de paz de Versalhes. A situação do País era tremenda. Faltavam abastecimentos, o Estado estava arruinado, corriam muitos boatos, e a epidemia de gripe matava milhares de pessoas.

No Porto estabeleceu-se uma Junta Governativa do Reino de Portugal, presidida pelo célebre capitão Henrique da Paiva Couceiro. Por quase todo o Minho e Trás-os-Montes voltou a haver bandeiras azuis-e-brancas. A Junta do Porto restaurou a antiga moeda (o real, através de carimbo nas notas de escudo em circulação), e a Guarda Nacional Republicana foi baptizada Guarda Real. Mas o rei não regressou a Portugal e o fracasso da restauração em Lisboa desanimou muita gente. Tudo acabou a 13 de Fevereiro, precisamente onde começara: no Porto, com um contra-golpe militar.

Depois do fracasso de dois regimes. A Monarquia de 1919 resultou do fracasso dos dois regimes políticos que a antecederam: o do Partido Republicano Português (PRP) de Afonso Costa, até 1917, e o de Sidónio Pais, entre 1917 e 1918. Em 1910, muita gente dispusera-se a aceitar a República, na suposição de que seria um regime liberal e pluralista. Mas a República, entre 1910 e 1917, não foi isso. Consistiu antes no domínio do Estado por um partido, o PRP de Afonso Costa, com uma orientação de esquerda revolucionária. Decidido a usufruir do poder em exclusivo, o PRP perseguiu e oprimiu todos os que se lhe opunham, desde os católicos aos sindicatos anarquistas, passando pelos republicanos mais liberais ou conservadores. Os jornais da oposição eram regularmente assaltados e destruídos e houve sempre milhares de presos políticos e exilados.

Em Dezembro de 1917, o major Sidónio Pais dirigiu um golpe militar que derrubou o governo do PRP. Quis manter a República, mas aberta a todos os que tinham sido excluídos e reprimidos pelo PRP: republicanos conservadores, monárquicos, católicos. Mas só Sidónio, com o seu carisma, dava uma aparência de solidez à ‘República nova’. Quando foi assassinado, a 14 de Dezembro de 1918, tudo se desfez. Os vários grupos políticos dispuseram-se a recorrer à força para predominar. A 10 de Janeiro, o PRP e outros republicanos tentaram um golpe armado em Lisboa e em Santarém. A 19, foi a vez dos militares monárquicos do Porto. O governo sidonista tentou jogar uns contra os outros: a 10, pediu ajuda aos monárquicos contra o PRP; a 19, ao PRP contra os monárquicos.

Uma causa dividida e hesitante. O caos político no mês de Janeiro de 1919 atingiu níveis fantásticos. A divisão política em Portugal não passava simplesmente por uma oposição entre republicanos e monárquicos. Cada um desses campos estava dividido entre si por divergências e ressentimentos por vezes mais profundos do que aqueles que os separavam do campo contrário.

À chamada Causa Monárquica, por exemplo, não correspondia nesta época uma organização partidária com um comando único, nem sequer uma convergência em termos de estratégia e ideologia. Paiva Couceiro, que chefiou o golpe no Porto em 1919, era pela restauração da Monarquia através de um golpe militar. Mas o rei D. Manuel e o seu lugar-tenente em Portugal, Aires de Ornelas, preferiam colaborar com uma República conservadora, uma espécie de ‘República governada por monárquicos’, como tinha sido o regime de Sidónio, donde no futuro resultasse a restauração de um modo consensual. Mas os monárquicos também não concordavam acerca da Monarquia a restaurar: a Monarquia constitucional de 1910, ou uma ‘Monarquia nova’, de acordo com o programa autocrático do chamado Integralismo Lusitano?

O que aconteceu em Janeiro de 1919 percebe-se melhor tendo presente esta fragmentação. Para Paiva Couceiro, ‘se não for agora, não é nunca’. Vestiu um velho uniforme de gala e apareceu a cavalo no Porto. Em Lisboa, Aires de Ornelas, fleumático onde o outro era impetuoso, ainda esperou um compromisso com os republicanos. Por isso concentrou as forças militares sob o seu comando – cerca de 900 soldados e uns 300 civis armados – em Monsanto, numa atitude defensiva. Quando lhe falavam de Couceiro, respondia: ‘Nós não podemos ter nada de comum com essa gente.’

Em Lisboa, a movimentação militar monárquica acabou a 24 de Janeiro, depois de dois dias de combates. Tal como D. Manuel temia, a perspectiva da restauração monárquica serviu para o PRP, em nome da unidade dos republicanos para a defesa da República, voltar ao governo, que logo monopolizou. No Norte, que era cultural e politicamente muito diferente do Sul, o ambiente era mais favorável à Monarquia. Muitos padres e fiéis, revoltados pelas perseguições do PRP à igreja, apostaram na restauração. Houve quem, ao princípio, tivesse previsto uma guerra civil de quatro anos. Mas Couceiro tinha pouca tropa e dificuldades logísticas. O governo de Lisboa dominava o mar, impedindo abastecimentos. A Junta do Porto não conseguiu que a Espanha a reconhecesse e, muito menos, ajudasse. A derrota em Lisboa, a 24, teve um efeito desmoralizador, tal como alguns combates mal sucedidos.

Os restauradores também foram confrontados com uma certa naturalização das instituições e símbolos republicanos. Um episódio, contado pelo escritor Campos Lima no seu ‘Reino da Traulitânia’, é significativo. Alguém se lembrou de estender a bandeira vermelha e verde da República na entrada do edifício central dos correios do Porto, para ser pisada pelos utentes ao entrar. Tiveram de desistir, quando constataram que o público evitava entrar nos correios. Afinal, aquela era a bandeira que Portugal tivera durante a guerra.

A 13 de Fevereiro, a Monarquia acabou como começara: por um golpe militar no Porto. O seu chefe foi o capitão João Sarmento Pimentel. Apesar de doente com gripe, aproveitou a saída de Couceiro e da maioria das tropas para restaurar a República à frente da Guarda Real, que voltou a ser a Guarda Republicana. A 19 de Fevereiro, os últimos combatentes da Monarquia deixaram Trás-os-Montes em direcção à Galiza. No total, os confrontos militares entre Janeiro e Fevereiro terão provocado uns 150 mortos.

Uma alternativa dentro da república. Os republicanos vencedores tentaram arranjar uma má fama à ‘Monarquia do Norte’, explorando as violências que alguns militantes monárquicos exerceram sobre presos republicanos no Éden Teatro. Daí o nome que lhe deram de ‘reino da Traulitânia’. Nada, de resto, se comparou às brutalidades das massas do PRP em Lisboa. Um caso particularmente repugnante foi o linchamento do monárquico Jorge Camacho, a 7 de Fevereiro, no Terreiro do Paço, quando chegava à capital sob prisão.

Mas foram sobretudo os próprios monárquicos quem se encarregou de deprimir a aventura do Porto. D. Manuel referiu-se depois à iniciativa de Couceiro como um ‘crime’, cometido contra as suas instruções. Uma parte dos monárquicos, como os do chamado Integralismo Lusitano, acabaram por romper com o rei, ligando-se à linha miguelista. Deixou de se perceber o que poderia ser a Monarquia, se fosse restaurada. Em 1924, o escritor Armando Boaventura publicou um livro humorístico com o título de ‘Sem Rei nem Roque’, em que imaginava o que seria a restauração da ‘monarchia com ch’: haveria um ‘concurso’ para escolher um rei, com pelo menos 2000 candidatos. Os políticos católicos inspirados pela hierarquia da Igreja começaram a afastar-se da Causa Monárquica.

O grande resultado de 1919 foi a prova de que a Monarquia não conseguia ser alternativa. O que não quer dizer que não fosse necessária uma alternativa. Porque a República que veio em 1919, não trazendo os mesmos chefes (Afonso Costa não regressou do exílio), fez regressar o pior da anterior experiência de domínio do PRP. Mas a alternativa iria ser encontrada dentro da forma republicana de regime, segundo o modelo sidonista. Seria o Estado Novo, que deixou de fora os principais combatentes de 1919, de um lado e do outro. Em 1939, vinte anos depois, Paiva Couceiro, o restaurador da Monarquia, e Sarmento Pimentel, o restaurador da República, estavam ambos exilados por Salazar.

HENRIQUE PAIVA COUCEIRO

O capitão Paiva Couceiro foi o presidente da Junta que restaurou a Monarquia no Porto a 19 de Janeiro de 1919. Alto, magro, louro, arrebatado, era uma figura quixotesca. Alguns chamavam-lhe o ‘novo Nuno Álvares Pereira’. Nascido em 1861, tinha sido um herói das guerras de ocupação de Moçambique no fim do século XIX e governador geral de Angola entre 1907 e 1909. Muito crítico dos governos da Monarquia, foi no entanto o único a combater os republicanos em Lisboa, durante a revolução dos dias 4-5 de Outubro de 1910. A República quis comprá-lo. Ele recusou e partiu para o exílio. A partir da Galiza, chefiou duas incursões armadas, em 1911 e 1912, para tentar uma restauração da Monarquia. Couceiro nunca se deu bem com nenhum partido ou regime político. O rei D. Manuel achava-o demasiado desalinhado e irresponsável. Combatente contra a República de 1910-1926, veio também a ser inimigo do Estado Novo de 1933, desse regime em que ‘vela a polícia e o lápis da censura’, como disse em 1937 numa carta a Salazar, que por isso o mandou prender e deportar para Espanha. Tinha então 76 anos. Morreu em 1944.
Rui Ramos

Fonte : Correio da Manhã


E em Lisboa o Almirante João de Azevedo Coutinho…


 
« – Lisboa…veremos; no centro, eu; no Pôrto, Couceiro…De resto, isso de Lisboa êle determinará…Vocês vão falar com Couceiro e êle decide… », ia dizendo o Coronel Silva Ramos.
 
« Seria, pois , o comandante em chefe, ir-lhe-iam oferecer essa tam anciada força à volta da Qual os seus parciais andavam; entregar-lhe-iam, diante das atitudes democráticas, todas as facilidades para a vitória em que há tantos anos andava pensando. Que de persistência enorme não tivera, que de esperanças não alimentara…
 
Couceiro não deixaria de aceitar…Tornava-se urgente ir falar-lhe.( … ). Não podia haver mais entraves.
 
Num movimento brusco lançaram-se para a casa onde o paladino se acolhia. Couceiro decidiu logo aceitar o comando no Pôrto ( … ) enquanto a Lisboa, e desta vez o Comandante radiava, entregar-se-ia tudo a essa bravura fria, heróica e lendária de João Azevedo Coutinho, o grande marinheiro das guerras de África que Lisboa recebera numa apoteóse no regresso das campanhas ( … ) Esse homem de face semi-olímpica na juventude, agora já de cincoenta anos, ainda era um romântico. Para a rebelião fardara-se e pusera ao peito todas as suas condecorações. Seria êle o chefe designado para esse levantamento da capital».
 
Rocha Martins- « A Monarquia do Norte »
Publicado por Rui Monteiro em "Causa Monárquica"

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