Senti vergonha com o comunicado do Ecofin, uma enorme bofetada a todos nós que devia ser dada nos destinatários certos
Eu não sou propriamente da escola dos que andam sempre com a bandeirinha no ar, cheios da nossa gloriosa História e das nossas magníficas qualidades. Há muito tempo que tenho poucas dúvidas de que somos um país pouco desenvolvido, com problemas sérios de crescimento e que esse subdesenvolvimento se manifesta um pouco por todo o lado, numa forma especialmente estreita de pobreza de pensamento e de acção, que depois impregna tudo, da cultura à política, da economia ao quotidiano. Não nos gostamos de ver ao espelho? Pelo contrário, gostamos imenso, só que o espelho é o da nossa imaginação.
Várias vezes repeti evidências que não tinham nada de original, a não ser o facto de serem pouco tidas em conta pelos lugares-comuns que fazem viagens fartas e rápidas por cá, dos cafés ao Facebook. Repeti que para cada lugar em que cada um estava sentado havia dez pretendentes. Que a inveja era um poderoso sentimento nacional, impulsionada pela fome social e pelo ressentimento. Que não nos enxergamos. Que o subdesenvolvimento estava na enorme preguiça mental que atravessa tudo, da comunicação social à política. Que num país em que somos todos primos uns dos outros, é difícil a democracia. Que os bens são escassos e a fome é muita.
Tudo isto foi dito, repetido, tri-repetido, por muita gente desde o século XIX até hoje e o vulgo optimista não quer ouvir e desdenha. Desdenha dos pessimistas. Desdenha dos "intelectuais" que "não fazem nada pelo país", nem sequer gostam da bola. Desdenha dos simples e prefere os complicados que nunca dizem nada de claro. Gosta dos eclécticos e amáveis com toda a gente e detesta os que não têm paciência para a ignorância presumida. Gosta de salamaleques e dos que pescam os cumprimentos: "Que bom blogue, Francisco! Disseste muito bem, Pedro! Grande post, gostava de o ter escrito!" Aprecia a subserviência, nem que seja para ter companhia. Mata tudo o que mexe, para não ter que se comparar.
Portugal é o melhor exemplo de que o ridículo não mata, alimenta. E no meio da transumância entre partidos do poder, e entre lideranças, lá se vão fazendo carreiras pela sombra, pelas obediências, pelo respeitinho. Subdesenvolvimento é isto: todos primos, pouca riqueza, patrocinato e clientelas. O resultado é a assustadora mediocridade da nossa vida política, onde o grosso das habilidades vai para a sindicância de interesses e a gestão das carreiras partidárias. Face aos problemas reais, pompa nas palavras e incompetência nos actos. É o que se verifica hoje: todos postos à prova e nada. E tudo isto é ampliado, produzido, alimentado, por uma comunicação social que é parte fundamental da máquina de mediocridade que está a funcionar nas democracias já há muito tempo e, a continuar assim, acabará por matá-las.
Volto ao princípio: eu que não sou da escola do nosso nacionalismo bacoco, de Selecção Nacional e portuguesinhos valentes a descer o outeiro, senti vergonha e humilhação quando vi e ouvi em Gödöllö, na Hungria, o país cujo primeiro-ministro foi apanhado a dizer que mentiu ao seu povo e corrido nas ruas, no meio da opulência dos palácios da nobreza austro-húngara e dos blocos de apartamentos cinzentos dos anos do comunismo, os ministros europeus do Ecofin e mais os seus ajudantes dos ajudantes, inclusive uns porta-vozes assalariados da Comissão Europeia, a falarem de Portugal e dos portugueses como um povo que vai ser punido, tem que ser posto na ordem, para ter direito a um empréstimo na 25.ª hora do seu desespero.
Eu sei que merecemos. Mas não merecemos todos, e não embarco nessa de culpar tudo e todos para desculpar alguns. Eu não me endividei para viver acima das minhas posses, pago os meus impostos gigantescos, não tenho nem quero ter um trem de vida que não seja modesto, sem espavento, não sou socialite e quase não tenho vida social, mesmo só no limiar da boa educação, detesto luxos e exibições, e ando há anos, sem eficácia como se vê, a denunciar o caminho que nos levou aqui quando muitos que agora o descobriram andavam deslumbrados com a modernidade estonteante da moda e a chamar-me a mim e a outros "velhos do Restelo". Eu sei que eles não sabem quem foi o "velho do Restelo", nem por que é que "ao cheiro desta canela o reino se despovoa", nem por que é que a gente embarca sempre em querer olhar o mundo com os olhos do Capitão sem ser capitão de coisa nenhuma, cheios de épica e bazófia, e de dinheiro emprestado.
Por isso, senti vergonha e humilhação quando li o comunicado do Ecofin, uma enorme bofetada a todos nós, que deveria ser dada nos destinatários certos, a começar no nosso perigoso primeiro-ministro Sócrates. O comunicado não poupa as palavras: o programa de ajuda será concedido na base do cumprimento "rigoroso" das condições exigidas, ou seja, não se ponham com desculpas, nem desvios, nem tretas, é para cumprir à letra, é para cumprir à força. Façam lá o trabalho de casa, essa expressão adolescente que agora se usa muito, senão vão para um canto, a pão e água, escrever a mesma frase duzentas vezes: "Ninguém nos mandou gastar de mais".
Depois vem uma bofetada em Passos Coelho: segundo Katainen, que certamente fez sempre os seus trabalhos de casa porque é considerado o melhor ministro das Finanças da Europa e é vice-presidente do PPE, o partido a que pertence o PSD, o pacote de medidas "terá de ser mais duro e mais abrangente do que aquele que foi rejeitado pelo Parlamento". O mesmo PEC IV é sempre referido como sendo o "ponto de partida" para todas as exigências que nos são impostas. E o facto de isso ser insistentemente referido é tudo menos inocente: não quiseram o PEC IV, vão ver como o PEC V ainda vai doer muito mais. Há um sentimento de irritação e até de vingança nestas palavras.
Se é verdade que o PEC IV foi a contrapartida de um plano de resgate secreto que Sócrates escondeu de todos para, com dolo, tentar que a ajuda externa inevitável fosse de responsabilidade alheia - quem conheça bem a personagem sabe até que ponto este é o tipo de politiquice em que ele é especialista -, toda esta embrulhada vai resultar num custo muito pior para os portugueses. Se o PEC IV chegava para garantir o pacote de ajuda, quem o decidiu "chumbar", se o sabia, cometeu um grave erro político. Agora vai ter de privatizar extensivamente a meia bola e força, na pior situação do mercado, e remover a "rigidez" do mercado de trabalho, ou seja, facilitar os despedimentos.
Vamos pagar a politiquice de Sócrates, para além do desastre prévio em que nos meteu de há vários anos para cá, mas também a falta de prudência de Passos Coelho que pensa que aquilo com que anda a lidar se concentra em sair bem nas manchetes dos jornais ou nas sondagens, e (talvez) o excesso de passividade do Presidente da República. Mas, que raio!, será que não estão informados, por vias directas ou travessas, do que se passa e dependem dos artigos do Financial Times? Que negociações fizeram Sócrates e Teixeira dos Santos até à crise de 23 de Março com os alemães e com a Comissão? O que é que obtiveram em contrapartida do PEC IV para além dos elogios públicos? O que é que Sócrates disse a Passos Coelho quando o informou do PEC IV e vice-versa? O que perguntou o Presidente a Sócrates e o que é que ele respondeu? O que disse Merkel a Passos Coelho, Cavaco Silva a Sócrates, Passos Coelho a Cavaco Silva? Não acredito que tenham dito apenas aquilo que nós sabemos, e, se foi assim, então ainda é pior. Se fosse atenuante, que não é, pode-se admitir que ninguém verdadeiramente actuou sabendo as consequências. Só pensaram em si mesmos, no seu êxito político e dos seus partidos.
Nenhuma destas matérias justifica hoje qualquer segredo e são um elemento fundamental para o julgamento de 5 de Junho. O outro é saber, no contexto destas imposições, o que o PS, PSD e CDS contam fazer: clarinho, bem explicado, e sem ambiguidades. Isso não mitiga a vergonha do que se passou, mas pelo menos pode ajudar-nos numa escolha que ainda é nossa, não é do senhor Juncker, da senhora Merkel, do senhor Katainen, ou do ajudante do ajudante do ajudante de uma qualquer burocrata de Bruxelas.
Historiador e deputado do PSD
Público, 9/4/2011
Várias vezes repeti evidências que não tinham nada de original, a não ser o facto de serem pouco tidas em conta pelos lugares-comuns que fazem viagens fartas e rápidas por cá, dos cafés ao Facebook. Repeti que para cada lugar em que cada um estava sentado havia dez pretendentes. Que a inveja era um poderoso sentimento nacional, impulsionada pela fome social e pelo ressentimento. Que não nos enxergamos. Que o subdesenvolvimento estava na enorme preguiça mental que atravessa tudo, da comunicação social à política. Que num país em que somos todos primos uns dos outros, é difícil a democracia. Que os bens são escassos e a fome é muita.
Tudo isto foi dito, repetido, tri-repetido, por muita gente desde o século XIX até hoje e o vulgo optimista não quer ouvir e desdenha. Desdenha dos pessimistas. Desdenha dos "intelectuais" que "não fazem nada pelo país", nem sequer gostam da bola. Desdenha dos simples e prefere os complicados que nunca dizem nada de claro. Gosta dos eclécticos e amáveis com toda a gente e detesta os que não têm paciência para a ignorância presumida. Gosta de salamaleques e dos que pescam os cumprimentos: "Que bom blogue, Francisco! Disseste muito bem, Pedro! Grande post, gostava de o ter escrito!" Aprecia a subserviência, nem que seja para ter companhia. Mata tudo o que mexe, para não ter que se comparar.
Portugal é o melhor exemplo de que o ridículo não mata, alimenta. E no meio da transumância entre partidos do poder, e entre lideranças, lá se vão fazendo carreiras pela sombra, pelas obediências, pelo respeitinho. Subdesenvolvimento é isto: todos primos, pouca riqueza, patrocinato e clientelas. O resultado é a assustadora mediocridade da nossa vida política, onde o grosso das habilidades vai para a sindicância de interesses e a gestão das carreiras partidárias. Face aos problemas reais, pompa nas palavras e incompetência nos actos. É o que se verifica hoje: todos postos à prova e nada. E tudo isto é ampliado, produzido, alimentado, por uma comunicação social que é parte fundamental da máquina de mediocridade que está a funcionar nas democracias já há muito tempo e, a continuar assim, acabará por matá-las.
Volto ao princípio: eu que não sou da escola do nosso nacionalismo bacoco, de Selecção Nacional e portuguesinhos valentes a descer o outeiro, senti vergonha e humilhação quando vi e ouvi em Gödöllö, na Hungria, o país cujo primeiro-ministro foi apanhado a dizer que mentiu ao seu povo e corrido nas ruas, no meio da opulência dos palácios da nobreza austro-húngara e dos blocos de apartamentos cinzentos dos anos do comunismo, os ministros europeus do Ecofin e mais os seus ajudantes dos ajudantes, inclusive uns porta-vozes assalariados da Comissão Europeia, a falarem de Portugal e dos portugueses como um povo que vai ser punido, tem que ser posto na ordem, para ter direito a um empréstimo na 25.ª hora do seu desespero.
Eu sei que merecemos. Mas não merecemos todos, e não embarco nessa de culpar tudo e todos para desculpar alguns. Eu não me endividei para viver acima das minhas posses, pago os meus impostos gigantescos, não tenho nem quero ter um trem de vida que não seja modesto, sem espavento, não sou socialite e quase não tenho vida social, mesmo só no limiar da boa educação, detesto luxos e exibições, e ando há anos, sem eficácia como se vê, a denunciar o caminho que nos levou aqui quando muitos que agora o descobriram andavam deslumbrados com a modernidade estonteante da moda e a chamar-me a mim e a outros "velhos do Restelo". Eu sei que eles não sabem quem foi o "velho do Restelo", nem por que é que "ao cheiro desta canela o reino se despovoa", nem por que é que a gente embarca sempre em querer olhar o mundo com os olhos do Capitão sem ser capitão de coisa nenhuma, cheios de épica e bazófia, e de dinheiro emprestado.
Por isso, senti vergonha e humilhação quando li o comunicado do Ecofin, uma enorme bofetada a todos nós, que deveria ser dada nos destinatários certos, a começar no nosso perigoso primeiro-ministro Sócrates. O comunicado não poupa as palavras: o programa de ajuda será concedido na base do cumprimento "rigoroso" das condições exigidas, ou seja, não se ponham com desculpas, nem desvios, nem tretas, é para cumprir à letra, é para cumprir à força. Façam lá o trabalho de casa, essa expressão adolescente que agora se usa muito, senão vão para um canto, a pão e água, escrever a mesma frase duzentas vezes: "Ninguém nos mandou gastar de mais".
Depois vem uma bofetada em Passos Coelho: segundo Katainen, que certamente fez sempre os seus trabalhos de casa porque é considerado o melhor ministro das Finanças da Europa e é vice-presidente do PPE, o partido a que pertence o PSD, o pacote de medidas "terá de ser mais duro e mais abrangente do que aquele que foi rejeitado pelo Parlamento". O mesmo PEC IV é sempre referido como sendo o "ponto de partida" para todas as exigências que nos são impostas. E o facto de isso ser insistentemente referido é tudo menos inocente: não quiseram o PEC IV, vão ver como o PEC V ainda vai doer muito mais. Há um sentimento de irritação e até de vingança nestas palavras.
Se é verdade que o PEC IV foi a contrapartida de um plano de resgate secreto que Sócrates escondeu de todos para, com dolo, tentar que a ajuda externa inevitável fosse de responsabilidade alheia - quem conheça bem a personagem sabe até que ponto este é o tipo de politiquice em que ele é especialista -, toda esta embrulhada vai resultar num custo muito pior para os portugueses. Se o PEC IV chegava para garantir o pacote de ajuda, quem o decidiu "chumbar", se o sabia, cometeu um grave erro político. Agora vai ter de privatizar extensivamente a meia bola e força, na pior situação do mercado, e remover a "rigidez" do mercado de trabalho, ou seja, facilitar os despedimentos.
Vamos pagar a politiquice de Sócrates, para além do desastre prévio em que nos meteu de há vários anos para cá, mas também a falta de prudência de Passos Coelho que pensa que aquilo com que anda a lidar se concentra em sair bem nas manchetes dos jornais ou nas sondagens, e (talvez) o excesso de passividade do Presidente da República. Mas, que raio!, será que não estão informados, por vias directas ou travessas, do que se passa e dependem dos artigos do Financial Times? Que negociações fizeram Sócrates e Teixeira dos Santos até à crise de 23 de Março com os alemães e com a Comissão? O que é que obtiveram em contrapartida do PEC IV para além dos elogios públicos? O que é que Sócrates disse a Passos Coelho quando o informou do PEC IV e vice-versa? O que perguntou o Presidente a Sócrates e o que é que ele respondeu? O que disse Merkel a Passos Coelho, Cavaco Silva a Sócrates, Passos Coelho a Cavaco Silva? Não acredito que tenham dito apenas aquilo que nós sabemos, e, se foi assim, então ainda é pior. Se fosse atenuante, que não é, pode-se admitir que ninguém verdadeiramente actuou sabendo as consequências. Só pensaram em si mesmos, no seu êxito político e dos seus partidos.
Nenhuma destas matérias justifica hoje qualquer segredo e são um elemento fundamental para o julgamento de 5 de Junho. O outro é saber, no contexto destas imposições, o que o PS, PSD e CDS contam fazer: clarinho, bem explicado, e sem ambiguidades. Isso não mitiga a vergonha do que se passou, mas pelo menos pode ajudar-nos numa escolha que ainda é nossa, não é do senhor Juncker, da senhora Merkel, do senhor Katainen, ou do ajudante do ajudante do ajudante de uma qualquer burocrata de Bruxelas.
Historiador e deputado do PSD
Público, 9/4/2011
Mas ninguém consegue parar as múltiplas e criminosas obras públicas , como o Museu dos Coches que afinal já não será para os coches, nem o museu (torre) ibérico em cima de um histórico convento em Abrantes, nem o novo centro cultural da EDP ao lado da Torre de Belém , etc ?!
A " dívida da república " é realmente fruto da mentalidade republicana ... Acredito que após o castigo virá a nossa redenção, assim o saibamos merecer .
Mas temos de obrigar os partidos a comprometerem-se relativamente à necessária alteração da infame lei do aborto livre (ou a pedido ) , que já matou cerca de 30.000 crianças, como condição para receberem os nossos votos ...
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