Razões Reais
Entre o Liberalismo e o Absolutismo
Não teria sentido que ainda hoje a questão do poder real se pusesse nos mesmos termos em que há século e meio tão apaixonadamente se debateu entre os nossos bis e trisavós. Tal hipótese denunciaria um absurdo arcaísmo político, uma lamentável inércia do pensamento, indiferente às duras experiências entretanto vividas e de olhos fechados às exuberantes realidades do nosso tempo. Aliás, em nenhuma das duas soluções contrárias e extremas -- liberalista ou absolutista -- se respeita ou compreende o verdadeiro espírito da Realeza.
O demo-liberalismo, sonegando todos os poderes efectivos ao Rei, desprestigiou e inutilizou quase por completo a Monarquia. Soberana de facto era a maioria parlamentar a quem o Rei devia, constitucionalmente, obediência.
E como haveria o monarca de exercer as funções de árbitro nacional desprovido de poder?
A doutrina absolutista, por motivo oposto, inutilizou igualmente a Monarquia. Fazendo do Rei um "governante" absorvente, transformando-o num ditador, anulou as virtualidades da instituição real. Em lugar da personificação da unidade nacional, da instância de apelo e de justiça ("Aqui del Rei!"), fez dele causa de discussões e divisões, alvo de crítica e de oposição, objecto de ódios, em que redundam geralmente as prolongadas oposições ao governo em política. E a oposição ao rei-governante confunde-se fatalmente com a oposição à Monarquia.
O Integralismo Lusitano marcou neste ponto uma sensata solução intermédia, enunciando a conhecida máxima de Gama e Castro: "O Rei governa mas não administra".
Queria com isso indubitavelmente significar que a autoridade é inseparável da dignidade real, mas que ao Povo cabe o direito activo de conduzir a administração pública.
Assim, nestes termos, ficou a questão até aos nossos dias. O que nunca se fez foi a destrinça, algo difícil, entre governo e administração. Daí as vagas ideias que mais ou menos pairam sobre o assunto quando se quer uma definição actual e explícita das funções do Rei.
Por nós, temos insistido em que, em princípio, o Rei não deve arcar com as responsabilidades do governo corrente, isto é, das funções comuns do executivo, nem a elas estar directamente ligado. Tais funções e responsabilidades são, por natureza, encargo próprio de um governo ou ministério.
O facto de fazermos depender do Rei a nomeação e a demissão dos ministérios já tem sido interpretado por alguns críticos como causa necessária da responsabilidade real, ainda que indirecta, na sua acção governativa.
Não cremos que justamente assim seja. O governo responde pelos seus actos perante o Rei, mas também responde perante a Assembleia parlamentar, que ambas as entidades, cada uma por seu modo, são representativas da Nação. À Assembleia incumbe, exactamente como principal função, fiscalizar o Governo e isso responsabiliza-a na obra deste. Enquanto o não censure ou não lhe manifeste a sua desconfiança, implicitamente fica entendido que o acompanha. Apenas numa circunstância pareceria legítimo cobrir com a responsabilidade real a responsabilidade do governo: no caso teoricamente admissível de o rei persistir pessoalmente em manter no poder um Governo reprovado pela opinião nacional. Apenas nesse caso, aliás improvável.
Mas a monarquia é o regime tradicional das liberdades populares («Nos liberi sumus»...) e o Rei o seu melhor garante.
Não o poderia ser o monarca coacto do Liberalismo. Também o Rei há-de ser livre («Rex noster liber est»...), se encarnar a nação livre. A liberdade real é o penhor indispensável da suprema justiça.
Um árbitro justo, independente do poder executivo, é o que é difícil conseguir, por muitos artifícios que se tentem, nos regimes de base electiva e que, com naturalidade, é fácil de possuir através da realeza.
Mas se o Rei fosse chefe do próprio governo, onde estaria a arbitragem, a jurisdição para a qual se apelasse e que, em última instância, pudesse decidir contra esse governo?
Voltemos um pouco atrás, à formula que o Integralismo perfilhou. -- governar, mas não administrar.
É evidente que, diante da centralização absorvente que o demo-liberalismo do século XIX operara, o Integralismo, ao enunciar que o Rei não administra, tinha em vista preservar as prerrogativas e o direito de administração autónoma que o povo local mantinha. Na verdade, era dentro de cada velho município que se determinava a vida pública quase totalmente.
A interferência do poder real na administração municipal fazia-se em grau mínimo, e notemos que o termo administração abrangia dentro dos seus limites a maior parte do poder legislativo e executivo que a regia.
É claro que o municipalismo -- bela florescência das liberdades populares na Idade Média -- foi definitivamente ultrapassado; mas não morreu nem jamais morrerá o espírito que o inspirou. Creio que seríamos felizes se o país inteiro pudesse ser o conjunto dos seus municípios, tendo no Rei o defensor dos respectivos forais.
Imaginar as disposições foraleiras dos municípios portugueses vivendo à sombra protectora da instituição real, talvez fosse o meio mais seguro de traçar o esquema de uma Constituição que, para já, nos serviria de suma política.
Entretanto, passando do idealismo à prática, num esforço objectivo de concretização, procuremos distinguir o que, à face do tempo actual, se colocaria no âmbito do ministério-governo ou ficaria debaixo da alçada régia.
Na lógica do nosso pensamento, parece não oferecer quaisquer hesitações atribuir ao ministério-governo a gerência e responsabilidade dos seguintes departamentos: Finanças, Economia, Comércio, Indústria, Agricultura, Obras Públicas, Comunicações, Educação, Saúde e Assistência, Trabalho, Transportes, Previdência Social.
Com efeito, estes departamentos compreendem aquela matéria que hoje podemos classificar de administração, segundo o sentido do escritor José da Gama e Castro. Governar, para o autor de «O Novo Príncipe», como para os integralistas, não era concentrar numa só mão todos os poderes; não era gerir directamente nem administrar, mesmo de forma indirecta.
A descentralização foi, pelo contrário, um dos pontos principais de resistência doutrinária do Integralismo. Por governo real significava-se aqui, essencialmente, a fiscalização atenta da conduta da gerência ministerial e do parlamento e o zelo activo pelo equilíbrio harmónico dos poderes do Estado.
Nunca será demais repetir que o papel por excelência da Realeza, inigualável, e que a todos supera, é o de personificar a unidade da Pátria e que a sua principal função, tradicionalmente expressa e aceite, é a de «defensora dos descaminhos do reino». Decerto que o Rei, cujas atribuições não se confinam estritamente nos limites do Estado, mas que é também chefe de Estado, há-de deter em suas mãos, em potência, um poder supremo; também a Nação o possui e o pratica, quando deixa de haver Rei de facto ou de direito. Mas o poder real exerce-se principalmente ao vigiar e moderar o parlamento e o ministério-governo, órgãos normais de administração e legislação.
Do carácter nacional e apartidário do Rei deduz-se que lhe deverão competir aqueles sectores que por natureza são exclusivamente nacionais. Contam-se, neste caso, as Forças Armadas, a Diplomacia e o Poder Judicial.
Em primeiro lugar, as Forças Armadas. Constitui um dos absurdos das repúblicas de partidos submeter à autoridade e ao mando de um ministro político ou de um presidente eleito as forças militares da Nação, pelo risco fatal de serem transformadas em instrumento de partido. Claro que pode perguntar-se: -- Quem haveria então de as comandar, se nesses regimes, ordinariamente, o Presidente é ele mesmo um político do partido? -- Só o Rei -- respondemos.
Numa monarquia de amanhã, o Governo deveria dispor dos corpos policiais suficientes para a manutenção da ordem pública, mas a Marinha, a Força Aérea e o Exército deveriam conservar-se independentes dos governos e apenas subordinados às ordens do Rei. A sua eficácia de árbitro nacional redundaria assim evidentemente fortalecida.
Por outro lado, há que salvaguardar a independência dos Tribunais e da Magistratura e evitar que a condução da Diplomacia caia na mão de governos efémeros, o que a diminuiria e lhe tiraria prestígio. As relações externas, pela sua continuidade e permanência, têm de estar sob a alçada de um poder que não morra. Esse poder é o do Rei.
Defesa Nacional, Diplomacia, Poder Judicial, eis tarefas de carácter nacional e apartidário que só um magistrado supremo, independente, moderador e agregador poderá desempenhar a contento. Dentro desta orientação inovadora, caberia ao Rei designar pessoalmente os ministérios responsáveis por tais tutelas.
Esclareça-se que o que acabámos de escrever configura apenas uma tentativa de desbravar um caminho até à data muito pouco pisado. Media via entre o Liberalismo e o Absolutismo, síntese integradora de contrários, importa traçá-lo doravante em linhas mais direitas.
O demo-liberalismo, sonegando todos os poderes efectivos ao Rei, desprestigiou e inutilizou quase por completo a Monarquia. Soberana de facto era a maioria parlamentar a quem o Rei devia, constitucionalmente, obediência.
E como haveria o monarca de exercer as funções de árbitro nacional desprovido de poder?
A doutrina absolutista, por motivo oposto, inutilizou igualmente a Monarquia. Fazendo do Rei um "governante" absorvente, transformando-o num ditador, anulou as virtualidades da instituição real. Em lugar da personificação da unidade nacional, da instância de apelo e de justiça ("Aqui del Rei!"), fez dele causa de discussões e divisões, alvo de crítica e de oposição, objecto de ódios, em que redundam geralmente as prolongadas oposições ao governo em política. E a oposição ao rei-governante confunde-se fatalmente com a oposição à Monarquia.
O Integralismo Lusitano marcou neste ponto uma sensata solução intermédia, enunciando a conhecida máxima de Gama e Castro: "O Rei governa mas não administra".
Queria com isso indubitavelmente significar que a autoridade é inseparável da dignidade real, mas que ao Povo cabe o direito activo de conduzir a administração pública.
Assim, nestes termos, ficou a questão até aos nossos dias. O que nunca se fez foi a destrinça, algo difícil, entre governo e administração. Daí as vagas ideias que mais ou menos pairam sobre o assunto quando se quer uma definição actual e explícita das funções do Rei.
Por nós, temos insistido em que, em princípio, o Rei não deve arcar com as responsabilidades do governo corrente, isto é, das funções comuns do executivo, nem a elas estar directamente ligado. Tais funções e responsabilidades são, por natureza, encargo próprio de um governo ou ministério.
O facto de fazermos depender do Rei a nomeação e a demissão dos ministérios já tem sido interpretado por alguns críticos como causa necessária da responsabilidade real, ainda que indirecta, na sua acção governativa.
Não cremos que justamente assim seja. O governo responde pelos seus actos perante o Rei, mas também responde perante a Assembleia parlamentar, que ambas as entidades, cada uma por seu modo, são representativas da Nação. À Assembleia incumbe, exactamente como principal função, fiscalizar o Governo e isso responsabiliza-a na obra deste. Enquanto o não censure ou não lhe manifeste a sua desconfiança, implicitamente fica entendido que o acompanha. Apenas numa circunstância pareceria legítimo cobrir com a responsabilidade real a responsabilidade do governo: no caso teoricamente admissível de o rei persistir pessoalmente em manter no poder um Governo reprovado pela opinião nacional. Apenas nesse caso, aliás improvável.
Mas a monarquia é o regime tradicional das liberdades populares («Nos liberi sumus»...) e o Rei o seu melhor garante.
Não o poderia ser o monarca coacto do Liberalismo. Também o Rei há-de ser livre («Rex noster liber est»...), se encarnar a nação livre. A liberdade real é o penhor indispensável da suprema justiça.
Um árbitro justo, independente do poder executivo, é o que é difícil conseguir, por muitos artifícios que se tentem, nos regimes de base electiva e que, com naturalidade, é fácil de possuir através da realeza.
Mas se o Rei fosse chefe do próprio governo, onde estaria a arbitragem, a jurisdição para a qual se apelasse e que, em última instância, pudesse decidir contra esse governo?
Voltemos um pouco atrás, à formula que o Integralismo perfilhou. -- governar, mas não administrar.
É evidente que, diante da centralização absorvente que o demo-liberalismo do século XIX operara, o Integralismo, ao enunciar que o Rei não administra, tinha em vista preservar as prerrogativas e o direito de administração autónoma que o povo local mantinha. Na verdade, era dentro de cada velho município que se determinava a vida pública quase totalmente.
A interferência do poder real na administração municipal fazia-se em grau mínimo, e notemos que o termo administração abrangia dentro dos seus limites a maior parte do poder legislativo e executivo que a regia.
É claro que o municipalismo -- bela florescência das liberdades populares na Idade Média -- foi definitivamente ultrapassado; mas não morreu nem jamais morrerá o espírito que o inspirou. Creio que seríamos felizes se o país inteiro pudesse ser o conjunto dos seus municípios, tendo no Rei o defensor dos respectivos forais.
Imaginar as disposições foraleiras dos municípios portugueses vivendo à sombra protectora da instituição real, talvez fosse o meio mais seguro de traçar o esquema de uma Constituição que, para já, nos serviria de suma política.
Entretanto, passando do idealismo à prática, num esforço objectivo de concretização, procuremos distinguir o que, à face do tempo actual, se colocaria no âmbito do ministério-governo ou ficaria debaixo da alçada régia.
Na lógica do nosso pensamento, parece não oferecer quaisquer hesitações atribuir ao ministério-governo a gerência e responsabilidade dos seguintes departamentos: Finanças, Economia, Comércio, Indústria, Agricultura, Obras Públicas, Comunicações, Educação, Saúde e Assistência, Trabalho, Transportes, Previdência Social.
Com efeito, estes departamentos compreendem aquela matéria que hoje podemos classificar de administração, segundo o sentido do escritor José da Gama e Castro. Governar, para o autor de «O Novo Príncipe», como para os integralistas, não era concentrar numa só mão todos os poderes; não era gerir directamente nem administrar, mesmo de forma indirecta.
A descentralização foi, pelo contrário, um dos pontos principais de resistência doutrinária do Integralismo. Por governo real significava-se aqui, essencialmente, a fiscalização atenta da conduta da gerência ministerial e do parlamento e o zelo activo pelo equilíbrio harmónico dos poderes do Estado.
Nunca será demais repetir que o papel por excelência da Realeza, inigualável, e que a todos supera, é o de personificar a unidade da Pátria e que a sua principal função, tradicionalmente expressa e aceite, é a de «defensora dos descaminhos do reino». Decerto que o Rei, cujas atribuições não se confinam estritamente nos limites do Estado, mas que é também chefe de Estado, há-de deter em suas mãos, em potência, um poder supremo; também a Nação o possui e o pratica, quando deixa de haver Rei de facto ou de direito. Mas o poder real exerce-se principalmente ao vigiar e moderar o parlamento e o ministério-governo, órgãos normais de administração e legislação.
Do carácter nacional e apartidário do Rei deduz-se que lhe deverão competir aqueles sectores que por natureza são exclusivamente nacionais. Contam-se, neste caso, as Forças Armadas, a Diplomacia e o Poder Judicial.
Em primeiro lugar, as Forças Armadas. Constitui um dos absurdos das repúblicas de partidos submeter à autoridade e ao mando de um ministro político ou de um presidente eleito as forças militares da Nação, pelo risco fatal de serem transformadas em instrumento de partido. Claro que pode perguntar-se: -- Quem haveria então de as comandar, se nesses regimes, ordinariamente, o Presidente é ele mesmo um político do partido? -- Só o Rei -- respondemos.
Numa monarquia de amanhã, o Governo deveria dispor dos corpos policiais suficientes para a manutenção da ordem pública, mas a Marinha, a Força Aérea e o Exército deveriam conservar-se independentes dos governos e apenas subordinados às ordens do Rei. A sua eficácia de árbitro nacional redundaria assim evidentemente fortalecida.
Por outro lado, há que salvaguardar a independência dos Tribunais e da Magistratura e evitar que a condução da Diplomacia caia na mão de governos efémeros, o que a diminuiria e lhe tiraria prestígio. As relações externas, pela sua continuidade e permanência, têm de estar sob a alçada de um poder que não morra. Esse poder é o do Rei.
Defesa Nacional, Diplomacia, Poder Judicial, eis tarefas de carácter nacional e apartidário que só um magistrado supremo, independente, moderador e agregador poderá desempenhar a contento. Dentro desta orientação inovadora, caberia ao Rei designar pessoalmente os ministérios responsáveis por tais tutelas.
Esclareça-se que o que acabámos de escrever configura apenas uma tentativa de desbravar um caminho até à data muito pouco pisado. Media via entre o Liberalismo e o Absolutismo, síntese integradora de contrários, importa traçá-lo doravante em linhas mais direitas.
Mário Saraiva
Fonte: Lusitana Antiga Liberdade
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