Se existe tal coisa como o perfil “clássico” e “correcto” de um monárquico, eu falho em todos os requisitos possíveis. Não sou exactamente uma imagem de Portugalidade (com algum sangue marrano e quase de certeza cigano pelo lado do meu pai [mas por aí podemos desmontar a ideia de Português mesmo, tendo em conta que não existe um grupo étnico Português, mas um grupo étno-cultural e linguístico, que tende a ser branco indo-europeu, alguns com elementos semitas e camitas], além de uma passagem nas décadas de 1830 e 1840 de um antepassado pelo Oeste e Sul dos EUA; e a família da minha mãe veio da Turquia Otomana para Marrocos nos anos de 1860 e daí para Portugal nos anos de 1880, sendo a família do meu avô materno Judia Turca de Esmirna-Izmir e a da minha avó materna cripto-Judia Portuguesa que se deslocara para a Turquia evadindo a Inquisição Portuguesa e acreditando que era chegado o Messias na dita Esmirna, e alguns desses antepassados Judeus casaram-se com mulheres Turcas étnicas, Irlandesas, Escocesas e Francesas e Espanholas, e por isso sou como Fernando Pessoa um «Nacionalista que se guia por este lema: “Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação”»). Não sigo aquela que as leis da monarquia a partir da mesma década em que a família da minha mãe se instalou perto de Barcelos classificavam de “religião do Reino” (a Católica Apostólica Romana, obviamente) preferindo pensar em mim como um Judeu arquetípico anarquista espiritual (e simpatizo com o «nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana» e a criação «se possível for, um sebastianismo novo que a substitua espiritualmente» de Pessoa).
Não sou conservador (embora seja de certa forma, como o meu “trisavô espiritual” Fernando Pessoa, «Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário», me reveja na classificação de “Anarquista Tory [Conservador]” de Orwell, e como José Adelino Maltez reconheço-me um pouco como tradicionalista não conservador). Não sou fidalgo (tenho de um sangue plebeu suburbano com bastardia de nobreza que desde o meu trisavô ao meu avô paternos esteve ligado à função pública da câmara municipal e de plebeu rural que até a vida avançada dos meus avós maternos não tinha sequer terra própria e vivia na de outros). Não sou elitista (tenho umas inclinações algo populistas, salvo as conotações negativas do termo. OK, digamos popular-democratas. Anti-elitistas, pelo levantar do povo, pela sociedade civil e sector cooperativo e social como alternativa à força da função pública e empresas privadas), não sou ordeiramente tradicionalista e direitista conservador (tenho uma algo anarquista suspeita do Estado e de governos e governantes) e não sou classista pelas classes altas (sendo, tal como o meu avô paterno monárquico, uma “laranja avermelhada” popular, ou como, o já agora republicano, Miguel Torga disse: «Sentimentalmente (…) socialista, (…) mas no fundo (…) um anarquista»).
Uau. Falhei todos os strikes possíveis do perfil de caricatura feito pelos republicanos e por muitos dos próprios monárquicos que são isto e portanto querem impor isto como sendo “A Monarquia”. Ante isto, muita gente, até mesmo republicanos ferrenhos que concordam ou têm factos de background semelhantes aos meus ficariam pasmados, primeiro que eu pudesse NÃO SER dessa tão popular, social, libertadora, inserir tanga de propaganda etc. etc. teoria de regime republicana, e segundo que em vez de ser um agnóstico da questão de regime que pudesse ser convertido quiçá mais tarde sou ferrenhamente monárquico (prefiro o termo realista mas já lá vamos)? Heresia!
Deixem-me explicar a minha curta odisseia ideológica. Apesar de criado por um pai e avô “laranjas” (este último “laranja avermelhado” como já disse) e uma mãe de background “vermelho” mas de tendência de esquerda fora do PC que não punha de lado votos mesmo à direita, quando eu acordei politicamente eu era uma espécie de Comunista Titoísta com 13, aos 14 eu decidi ser um centrista moderado mas mantive-me inclinado em direcção a socialismo e marxismo, eu deixei qualquer ideologia clara (não que tivesse alguma vez lido um texto Titoísta assim eu era um pouco como um dogmático que não sabia o seu próprio catecismo) com 16 e tornei-me tão somente pela liberdade e respública social sem rótulos, mas nesta altura eu sabia pouco da política e ainda menos das suas filosofias para além do que aprendia da tv, conversas de família e livros de história. Foi só com 18 anos que eu realmente fiquei apanhado e começei a voltar às fontes (e não parei desde então). Foi depois de ir ter a Herzen com 18 que eu cortei para sempre com Marx e a minha política e filosofia são influenciadas pelo “não sacrificar pessoas sob o altar de construções mentais” de Herzen e de E. H. Carr.
Mas no geral sabia que estava em volta do centro, era moderadamente conservador em privado mas pelo “mexilhão” e reformista na sociedade-política e economia e libertário em costumes, mas que vinha a devorar gente que se dizia socialista mas era heterodoxa e não tinha nada que ver com o socialismo dos socialistas democráticos e social-democratas (como Aleksandr Herzen, Aleksandr Kerensky, George Orwell, Santiago Carrillo, Emídio Guerreiro, Enrico Berlinguer, Júlio Fogaça, etc., nem de propósito gente que inspirou gente ao meu centro e à direita também), e deixava-me formular por eles. E certamente hoje tenho muito menos inclinação para me desviar da direita e para me pensar de esquerda e quero mais puramente ser e estar ao centro.
Mas e a monarquia? Como um marrão de história que vinha com a ideia de uma bagagem histórica do tempo dos reis, de que tinham havido avanços e continuações estáveis não rivalizados pelas três ou quatro (eu gosto de contar o período pós-fim do Conselho da Revolução e do quasi-presidencialismo Eanista) repúblicas, a família do meu pai era de costela monárquica, principalmente o meu pai e o meu avô, que com as suas estórias me dava a ideia do nosso monarquismo familiar e das nossas admirações desses “gigantes” como os maiores dos nossos primeiros e últimos e reis, o Santo Condestável (que ele sempre me lembrava foi conde da nossa terra e tinha uma casa na parte velha da cidade), Mouzinho de Albuquerque, o Paiva Couceiro, e dos Duques de Bragança que foram também Condes de Barcelos e depois Reis de Portugal). O meu pai sempre viu D. Duarte como o seu Rei, o seu chefe de Estado independentemente das eleições em que votasse e dos candidatos de direita (ou de Bloco Central como em 1991). A minha mãe era de uma família republicana a resvalar o Jacobino, e a minha mãe pouco diferente, mas uma coisa que ajudou a formar mais o meu monarquismo foi o facto de, mesmo antes do corte com a Casa de Windsor e de ela ser tornada num meio do republicanismo Britânico vocalizar a sua causa e tentar forçar a reforma nesse sentido, ser uma das “devotas” de Santa Diana Princesa. Apesar de ela (Diana, não a minha mãe) ter pergaminhos de descendência de nobre (tendo em conta a história sexual da nobreza europeia isso não é nada, até eu plebeu de classe média/média-baixa que sou também tenho qualquer coisa disso) era de classe média-alta de facto, representou um certo “desempoeirar” de costumes, defendia no âmbito do velho “noblesse oblige” causas sociais e combate às injustiças sociais, uma aproximação de vivências com a população de que, tanto quanto sabia em 1981, seria rainha um dia, e até na morte, quando a pressão popular levou (e na minha opinião e da minha mãe bem) a Rainha Isabel II a ceder e dar um funeral de Estado a Diana. Tudo isso (e mais uma certa solidariedade feminina, e não esqueçamos a costela escoto-irlandesa) fazia com que nem a minha mãe republicana empedernida não conseguia resistir ao sangue novo dos Windsor. O “noblesse oblige” Dianista e a ideia de que alguém com uma coroa podia e devia ceder ante a sua vontade popular e que a representava formou a minha mentalidade de maneira que só mesmo ao momento que escrevo estas linhas entendo. Com esta família e esta experiência de uma das principais famílias reais democráticas mundiais fazendo parte mas estórias em directo da minha infância, que poderia ser eu senão um realista?
A minha anglofilia (e mesmo anglo-americanofilia) levou-me a atentar muito sobre o sistema político britânico, a sua história e a sua casa real. E descobre-se que em 1969 só 19% da população Britânica apoia a República, e hoje, mesmo depois que todos os problemas que deram uma nova fama de fábrica de escandaleira à Casa de Windsor, é pouco mais (os republicanos quase que tiveram de oportunistamente aproveitar-se do luto do dianismo para tentar atrair simpatia e ligeiro aumento!).
Ao contrário da ideia de que a monarquia representa um classismo elitista que entorpece acommonwealth social, sem cair a monarquia o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) e o Estado providência baseado no projecto do Liberal Beveridge e não só não impediram como até apadrinharam o consenso do pós-II Guerra e mesmo o consenso do pós-Thatcherismo, e veremos que outro consenso pós-primeiro Governo de Coligação não entre os partidos do Bipartidarismo (National Government) a rainha ajudará a dar à luz. A Suécia viu o mesmo e mais igualitarismo, feminismo e democracia social que muitas repúblicas podem só sonhar com, feita pelos Liberais, Centristas, Social-Democratas e mesmos Conservadores moderados, e tem uma democracia igualmente histórica e enraizada. As principais questões políticas do Reino Unido são decididas pelo parlamento, mesmo por referendo na sociedade civil, e não seriam avançadas pelo fim da monarquia constitucional. A monarquia Britânica é inútil então? E que dizer da presidência Portuguesa? A Rainha Isabel II várias vezes no seu longo magistrado (que mais que reinado é um magistrado moral) se opôs a decisões de Primeiros-Ministros que poderiam enfraquecer a União, mas não forçava os governos a retroceder, e ao contrário dos nossos presidentes eleitos depois de concorrerem graças a apoios partidários não precisa de temer ser acusada de não ser isenta (como o nosso Presidente Cavaco teve quanto à crise sobre o PEC IV por causa de temer ser acusado de favorecer o PSD ou toda a oposição ou de ceder ao PS), e a tentação do Primeiro-Ministro mandar o chefe de Estado dar uma volta ao bilhar grande é muito menor (estamos a falar do Rei-Terra, o símbolo feito gente de toda a história e de tudo o que vem com a nacionalidade!).
Assim chegamos à principal razão porque eu, esteta, místico e amante de simbologia e símbolos defendo a monarquia: nacionalismo e integração de simbologia nacional e da própria nação na chefia de um Estado democrático e moderno. Como o meu amado Orwell disse em «O Leão e o Unicórnio: Socialismo e o Génio Inglês»: «Uma pessoa não pode ver o mundo moderno como é a não ser que uma pessoa reconheça a força avassaladora do patriotismo, a lealdade nacional. Em certas circunstâncias pode quebrar-se, a certos níveis de civilização não existe, mas como uma força POSITIVA não há nada para colocar a seu lado. Cristianismo e Socialismo internacional são tão fracos como palha em comparação com ele. Hitler e Mussolini ergueram-se ao poder nos seus próprios países muito largamente porque eles podiam apanhar este facto e os seus oponentes não podiam.» Para mim, enquanto anti-nazi-fascista de sangue Judeu e com avós paternos que tinham apoiado a campanha de Humberto Delgado, o “Nunca mais” é vital para mim, e aqui Orwell toca sobre um ponto essencial: se o nacionalismo, ou no mínimo o patriotismo, for purgado e abolido, será propriedade de fanáticos, racistas, autoritários, totalitários. E a melhor ferramenta para isso é a ligação à tradição, história e todo o que a nação representado pela figura do monarca e toda a instituição.
Sim, mas e como conciliar isso como inclinações reformistas, libertárias, populistas, pró-harmonia de interesses de classes, e mesmo anarquistas que tenho com monarquias milenares e tradicionais. Mesmo considerando uma revolução Socialista nacionalista/patriótica que abolisse a sociedade de classes Britânica dizia «Um governo Socialista Inglês irá transformar a nação do topo a baixo, mas irá ainda carregar por todo o lado as marcas inconfundíveis da sua própria civilização (…).
Não será doutrinária, nem sequer lógica. Abolirá a Casa dos Lordes, mas muito provavelmente não irá abolir a Monarquia. Deixará anacronismos e pontas soltas em todo o lado, o juiz na sua ridícula peruca de pelo-de-cavalo e o leão e o unicórnio sobre os botões de boné de soldado.» Por muito que os republicanos queiram dar uma imagem de ultra-racionalidade para os seus argumentos e o seus regime, o que fundamentalmente faz os sistemas funcionar é a psique de um povo, as éticas, as instituições, o dia-a-dia, que não é matemático, ultra-lógico, que não pode ser forçado por uma fórmula a resultar, mas por senso comum, emotividade, amor pela nação e herança de uma pessoa. Por muito que, como dizia Orwell «quase qualquer intelectual Inglês ficaria mais envergonhado de ser apanhado de pé em atenção durante God Save the King [o hino Britânico que muda conforme o sexo do soberano] do que de roubar de uma caixa de esmolas», a realidade é que para os populares factores emocionais, de orgulho, de comunidade, tradicionais são a verdadeira ética re(s)publicana. É por isso essencialmente que eu defendo a monarquia, por desde a Idade Média portuguesa em que muitos reis ascenderam ao trono sustentados pelos pequenos contra os grandes, e a união do apoio da nobreza minhota e dos pequenos de Portucale e Colimbria se ergueu D. Afonso Henriques, como segundo a lenda da “Gesta de Afonso Henriques” o Conde D. Henrique deixou em testamento ao seu filho futuro primeiro rei de Portugal no seu leito de morte em Astorga: «sê companheiro a filhos d’algo/E dá-lhes sempre seus soldos bem contados./E aos concelhos faz-lhes honra e forma-os como ajam direitos assim os grandes como os pequenos./E por rogo nem cobiça não deixes a fazer justiça/Que se um dia deixares de fazer justiça um palmo/Logo em outro dia se arredara de ti uma braça./E porem, meu filho tem sempre justiça em teu coração./E tu terás Deus e as gentes./E não consintas em nenhuma forma que teus homens sejam soberbos nem atrevidos em mal nem façam pesar a nem falem torto/Que tu perderias por tais coisas o teu bom nome se o não vedasses.» Temos algum dos gabarolas da ética republicana que nos têm governado um discurso sequer, muito menos um viver, ao nível disto? Quem hoje se governa pelo “Pela lei e pela grei [nação, povo, clã; descendência; conjunto dos paroquianos]”?. Perdoem-me os republicanos da eleição do chefe de Estado, tenho aqui toda a ré(s)publica que preciso. Por isso prefiro, mais que monárquico, o termo republicano realista, por que é isso que sou, um re(s)publicano a sério, mas com um chefe de Estado real.
Com a minha costela anarquista não posso deixar de concordar com aquela frase do Britânico Russel Brand “a minha relação com a monarquia é como com a pornografia: gosto mas não sei se deva.” É o que emocionalmente não consigo não apoiar. Pode não ser o melhor, e enquanto outros meus correligionários criam mil e uma razões racionais (das orçamentais às constitucionais) para a apoiar a monarquia, para mim é tão-somente isto tudo que vos disse. Se vos tocar o coração como ao meu juntem-se a nós, se não, não pode ser feito acontecer.
Avigdor Tuvalkabil Cunha
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