quinta-feira, 23 de junho de 2011

SEM REI NEM GREI

Confirma Sousa Bastos que a Procissão do Corpo de Deus, saída da Sé na data da comemoração era a mais afamada de Lisboa, onde se incorporavam os próprios Soberanos de Portugal, o que se atesta nesta fotografia do provisoriamente Derradeiro Deles. Sintoma da nossa decadência é a preparação minuciosa de festejos estar hoje reservada a a alarvidades como o Carnaval, ou a festejos dignos mas com cada vez mais reduzida reflexão te(le)ológica, como os dos Santos Populares. Esta que hoje teria lugar começava um mês antes, com as principais artérias da Capital ostentando as janelas e varandas com colchas e demais panos preciosos dependurados, à maneira do que ainda se faz em Espanha nos momentos festivos e hábito que de cá desapareceu, talvez por não restar muito para celebração. A relevância pública ia a pormenores como a mudança de fardamento dos militares, que iniciavam o uso da calça branca estival nesse dia. Era o evento mais interclassista, com popularíssima afluência, incorporação das elites do Reino, Família Real e Pares à cabeça; e todo o Cabido e Irmandades, marcando a presença das Basílicas e Referências de Culto. Como também transversal em matéria de etnias, fazendo desfilar desde oito dias antes o Estado de São Jorge, composto pela Comunidade Negra tornada Alfacinha. Tudo sob a invocação do Santo nomeado, a da vitória em Aljubarrota, cujo intérprete vinha do Castelo para baixo, após ser içado por guindastes similares aos que faziam montar os cavaleiros e armaduras respectivas no célebre filme de Orson Welles.
Tempos em que o sentimento comunitário era mais do que o pretexto para as risadas escarninhas, de hoje, salvo quando são substituídas pelos apelos a "exercício de cidadania", gritos de impotência e esgares manipulatórios que semeiam cada vez maior aversão.
Paulo Cunha Porto
Jovens do Restelo

HISTÓRIA
Procissão do Corpo de Deus na Baixa de Lisboa
 
A solenidade conhecida pelo nome de Corpus Christi (em Portugal designada Corpo de Deus) ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, só ganha lugar de relevo na Liturgia em 1246, quando o bispo de Liège (Bélgica) instituiu a festa, na sua diocese. Esta primeira “festa oficial” do Corpus Christi surge em consequência das revelações recebidas pela Beata Juliana de Retinne. Pela bula Transiturus (1264), o Papa Urbano IV (que antes fora bispo de Liège) estendeu a festa a toda a Igreja, como solenidade de adoração da Sagrada Eucaristia.
 
A solenidade do Corpus Christi já era celebrada em Portugal no século XIII, desde o reinado de D. Afonso III. Era, à época, uma festa de adoração, não envolvendo a procissão pelas ruas.
O rito da procissão foi instituído pelo Papa João XXII (1317). Na igreja dos Mártires, em Lisboa, manteve-se, no decurso dos séculos (e apesar das inovações havidas), o rito da festa com exposição do Santíssimo, Procissão, Vésperas solenes e Sermão.
 
As Câmaras Municipais e as Corporações de Artes e Ofícios acolheram a devota iniciativa, pelo que, a breve trecho, a Procissão veio a tornar-se a mais vistosa e interessante de todas, merecendo o título de “Procissão das Procissões”.
 
Constituída por cortejo cívico e corporativo, com carros alegóricos, figuras pitorescas, danças, momices e cenas de autos sacramentais, a procissão demorava horas a caminhar, vindo a constituir tanto um evento religioso como um evento social.
 
As Câmaras, determinando instruções régias, publicaram Regimentos ou regulamentos da Procissão, indicando os usos e os costumes, os modos de vestir, as obrigações de cada Corporação, as danças (entre elas a judenga, ou dança dos judeus), as bandeiras e pendões, as coreografias (anjinhos, folias, figuras sacras...) e o lugar do Clero. Raras foram as sedes concelhias que não tiveram Regimento da Festa, mas as memórias mais expressivas acerca da Procissão ficaram em Coimbra, no Porto e em Lisboa.
 
Celebrada em Lisboa, a festa do Corpo de Deus incluiu a Procissão, pela primeira vez, em 1389. Eram os tempos da consolidação da autonomia face a Castela e do bom ambiente criado pelas vitórias bélicas de Nuno Álvares e da influência cultural britânica (a ponto de S. Jorge - devoção inglesa, vencedor do Mal, do Dragão - ser considerado Padroeiro de Portugal).
 
Por isso, à solenidade do Corpus Christi juntou-se a festa de S. Jorge. Desta junção, resultou a magnificência da Procissão da capital. A festa chegou a atingir surpreendente grandiosidade no tempo de D. João V, incorporando a Procissão incorporava, desde logo, as associações socioprofissionais e também as delegações das diversas Ordens Religiosas de Lisboa (Agostinhos, Beneditinos, Dominicanos, Franciscanos, Ordem de Cristo...) e militares. No cortejo, avultava a figura de S. Jorge a cavalo e a Serpe, ou dragão infernal (do tipo chinês, locomovido por figurantes), contra o qual S. Jorge lutava.
 
Havia paragens para representação das famas ou glórias de S. Jorge; e também para uma série de danças. Representavam-se ainda as tradicionais “estações” do Santíssimo, como hoje ainda se faz na procissão de Sevilha.
 
No final do cortejo, vinha o pálio, a cujas varas pegavam os mais altos dignitários da Corte e da Câmara, sempre representada por toda a Vereação. Sob o palio, deslocava-se o Bispo de Lisboa, ostentando a custódia com o Santíssimo Sacramento. Era ladeado pelo Rei, ou Chefe de Estado, ou dignitário similar.
 
Dado curioso a salientar é o da tentação de realização de atentados contra as figuras régias, durante a procissão do “Corpus Christi”. Um deles, contra a pessoa de D. João IV. Sobrevivendo o monarca ao acto, a sua esposa (D. Luísa de Gusmão) promoveu a construção do Convento dos Carmelitas, na Baixa Lisboeta. Edificado no exacto lugar do falhado crime, foi chamado do “Corpus Christi”. 
 
Outro atentado famoso deu-se contra D. Manuel II, perto da Igreja da Vitória, quando a procissão passava na rua do Ouro.
 
Mas a legislação de 1910, proibindo os dias santos da Igreja (excepto o Natal e o dia 1 de Janeiro), interrompeu o culto público, embora, nas igrejas, continuassem a ser celebradas missas solenes; e solenes pontificiais nas Sés.
 
Em 2003, a Procissão do Corpo de Deus voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde outrora se cumpria. A solenidade, presidida pelo Cardeal-Patriarca, teve começo com a celebração da Missa no Largo da Igreja de São Domingos, no logradouro do palácio da Independência. O término da procissão deu-se na Rua Garrett, diante da Basílica dos Mártires, com a Bênção do Santíssimo Sacramento. Estiveram presentes, na Missa e procissão, mais de cinco mil fiéis - entre os quais autoridades civis e militares.
 
Iniciamos hoje a publicação de quatro conjuntos de fotografias da Procissão do Corpo de Deus que se realizou em Lisboa no passado dia 7 de Junho.
 
A primeira série de imagens refere-se ao ambiente que antecedeu o início da Procissão. As restantes fotografias acompanham o percurso desde a Sé Patriarcal até ao Largo do Município.
 
Apontamento histórico: Departamento da Comunicação e da Cultura do Patriarcado de Lisboa.
 
 

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