terça-feira, 27 de setembro de 2011

SALAZAR E OS MONÁRQUICOS


A revolução nacional  de 28 de Maio representou para muitos a esperança na restauração da monarquia. A chegada ao poder de António de Oliveira Salazar, um já ilustre católico conservador, representou a certeza – Em vez disso, durante quarenta anos  Salazar limitou-se a fazer esperar. Transformou os monárquicos nos penitentes que ainda são hoje.

28 de Maio
A única realidade política que saíu derrotada em 28 de maio de 1926 foi o jacobinismo dos partidos republicanos. Não foi a república. A consciência religiosa  da maior parte dos portugueses tinha sido violentada durante a I República. Os militares procuraram trazer para o Governo doPaís aqueles católicos que entretanto se tinham vindo a organizar. A hierarquia da Igreja acedeu ao poder.
A essência da organização política da ”oposição à I República não cabia aos monárquicos enquanto tais. O único ”partido” para além dos partidos republicanos, era o Centro Católico – ”Organização dos católicos  que, em obediência aos desejos da Santa Sé, sacrificam de momento as suas reivindicações políticas, mormente no que respeita à questão do regime, e se unem para conquistar e fazer reconhecer as liberdades e os direitos da Igreja. ”O Centro Católico aceitou a legitimidade do regime republicano. Foram chamados para o Governo políticos do Episcopado e entre eles António de Oliveira Salazar. Estava tudo farto dos partidos e dos políticos que tinham protagonizado até então a desgraçada instabilidade governativa que se sabe. A Igreja Católica, que não era propriamente um partido, foi reconhecida como factor primordial de pacificação social.
Mais tarde, em 1930, foi criada a União Nacional, que veio congregar monárquicos e republicanos, não se admitindo quaiquer grupos ou facções neste novo ”partido único”. O novo Estado baseava-se no compromisso entre várias forças. Haveria um pluralismo funcionalizado pela ”paz pública e o bem da nação”. Os monárquicos eram convidados a participar no esforço da Restauração nacional, sendo também convidados a prescindir do seu sonho de Restauração real durante aqueles primeiros anos difíceis da reconstrução do País. Ainda assim, os monárquicos conseguiram ter o privilégio único de se manterem autonomizados legalmente através da Causa Monárquica. Em termos práticos esta autonomia nunca deu nada: foi a célebre ”causa efeito”. Com a união Nacional e a Constituição de 33, a II República fica institucionalizada. O regime mantém-se republicano, consagra-se o autoritarismo de Chefe de Governo (e não de partido único como pretendiam os camisas azuis de Rolão Preto), sendo a acção governativa estabelecida em cooperação com a Igreja.

O Monárquico de Coração
Os colaboradores mais próximos de Salazar dizem que ele era um ”monárquico de coração”. Éuma daquelas frases que se repete muitas vezes, mas não se sabe muito bem que quer dizer. Implicará que há monárquicos de cabeça? E Salazar, seria mais ou menos monárquico, por ser só de ”do coração”? Entende-se melhor que Salazar tenha sido um ”monárquico por formação e tradição”. Em privado, ter-se-á declarado ”monárquico por temperamento e educação”, o que vem dar ao mesmo. Não era de certeza absoluta um fanático, isso não. E nem foi preciso uma intuição excepcional para salazar perceber a debilidade do princípio monárquico como valor político activo. Sentia que ”as novas gerações cultas” eram indiferentes ao problema do regime. Tinha consagrado uma constituição, tornara-se um estadista que percebera a premência de agradar a todos. Sentiu que conseguia aguentar os monárquicos sem lhes dar muito, utilizando as suas divisões internas. A morte de D. manuel II, em 1932, terá dado o toque de finados para o monarquismo de Salazar. D. Manuel II morria sem descendentes e Salazar não reconhecia as pretensões de D. Duarte Nuno. A generalidade dos monárquicos contionuou mais trinta anos à espera, acreditando na possibilidade de converter aos poucos as estruturas do Estado Novo em instituições monárquicas.
Em 1932, com  a morte de D. Manuel II, Salazar quis convencer os monárquicos que o ideal restauracionista, apesar de muito respeitável, era puro romance e fantasia ”Trabalhemos dentro das instituições actuais, sem romantismo ou fantasias. Não nos esqueçamos de que a ditadura se fez contra o espírito partidário, mas não apenas contra o espírito partidário republicano”  Manuel Braga da Cruz define este posicionamento como ”centrismo católico, que ”subordina a questão das formas de governo e de regime à prioridade da questão moral e do problema político nacional”.

O Momento Oportuno
Os únicos que parecem ter compreendido o alcance da consagração deste hibridismo foram, primeiro algusn integralistas e, depois, os nacionais-sindicalistas arregimentados em torno da figura de Rolão Preto. Salazar conseguiu calar estas oposições e protestos disciplinando a quase totalidade dos monárquicos sob a a alçada uniformizante da União nacional. Henrique Barrilaro Ruas fala, a este propósito, de um verdadeiro pacto tácito entre a Causa Monárquica e Salazar. Os monárquicos teriam de esperar pelo ”momento oportuno”, o qual acabaria por vir a ser ditado pela única pessoa que o poderia fazer: Salazar. Os que teimaram em duvidar do pacto ou os que não estavam para pactos (Almeida  Braga, Rolão Preto, Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, entre outros) ficaram no ”exílio”.
Consta que Salazar não acreditava no carisma de D. Duarte Nuno. Mas a verdadeira razão que o teria levado a recusar a presença da família real em Portugal seria não lhe ter agradado a ideia de criar tão cedo um clima propício à Restauração. Era sempre muito cedo… Mas o que é certo é que acabou por acontecer, mesmo contra a vontade de Salzar, dando novo alento aos monárquicos alinhados. Para Henrique Barrilaro Ruas houve uma boa ocasião de restaurar a monarquia nos centenários, em 1940. Haveria um ambiente pró-monárquico e as veleidades individualistas estavam ainda para chegar. Mas é só com a morte de Carmona, em 1951, que toda a gente sentiu que ”chegou o momento”. Foi o delírio nas hostes, mas eis que surge Marcello Caetano, que inegavelmente estragou a festa preparada por Mário de Figueiredo. No seu célebre ”discurso de Coimbra” arrumou a euforia restauracionista. Para Marcello o ”regime que está” é forte e estável: Portugal nutria um forte sentimento republicano; os colonos liberais não veriam com bons olhos uma Restauração da Monarquia; e, por último, o pretendente não estaria decididamente à altura de instaurar um novo regime e enfrentar as dificuldades inerentes a esse movimento. O primeiro argumento aduzido deverá ter soado muito bem a Salazar. Para além disto, ainda veio Santos Costa acrescentar surpreendentemente que os militares também não estariam preparados para aceitar uma  mudança dessas (a doutrinação não teria sido muito eficaz nesses meios…)

Apaziguamento
Poderia especular-se que Salazar rejeitou, neste e noutros momentos, um seu profundo ideal, em prol de uma estabilidade garantida, que ficaria alienada por um chocante reviver de instituições monárquicas. Em 51, com grande sentido prático, preferiu mais uma vez não arriscar. Seguiu a política do apaziguamento, saindo-se com uma daquelas frases brilhantes: ”Estudemos tudo, mas não nos dividamos em nada”. Não é para levar a sério. A divisão foi precisamente aquilo que Salazar pretendeu. Paralelamente ao discurso de Marcello, Mário de Figueiredo proferiu um outro, na mesma altura, , que também ficou célebre. Dizia o contrário das teses defendidas por Marcello Caetano. A Causa entende que este discurso mantem viva a intenção de Salazar vir a restaurar a Monarquia. Oficializavam-se dois discursos antagónicos para contentar as duas facções. A maçonaria de Bissaia Barreto também ficou satisfeita com o que tinha dito Marcello Caetano. Era isto o ”apaziguamento”. Uma das palavras-chave que permite compreender a estratégia política preferida de Salazar durante quarenta anos.
Esta luta por manter ”a família unida” continuou sempre. Lá ia dando uma no cravo outra na ferradura. Numa entrevista, Marcello Caetano deu uma na ferradura ao dizer que a questão do regime estava resolvida. Salazar não hesitou em desmenti-lo. Foi sempre acenando à distância com a cenoura da Restauração, ”a solução monárquica deves ser deixada em suspenso, como uma possibilidade futura, longínqua e indefinida” Salazar pode passar à história como um brilhantíssimo empata. Quando a ruptura do ”pacto tácito” estava finalmente para ser um facto consumado, deflagra a guerra em África, Em 1958, D. Duarte Nuno chegou a ter preparada uma proclamação ao País (redigida por Rolão Preto, Sousa Tavares e Amaro Monteiro – todos monárquicos), em que declara o seu apoio a uma revolta militar de esquerdas e direitas contra Salazar, com a condição de em caso de vitória se realizar um plebiscito sobre a forma do regime. O lugar-tenente (a liaison de Salazar) como é óbvio, não deixou tal proclamação ser assinada. também alguns monárquicos, em 1961, tomam posição em relação a Angola, defendendo  a igualdade potencial entre pretos e brancos no que diz respeito à participação na gestão dos territórios ultramarinos. São partidários de uma política de integração, expressando algumas reflexões num manifesto intitulado ” Uma Posição Portuguesa”. O manifesto redigido por Barrilaro Ruas foi bastante bem recebido por muita gente: desde alguma esquerda civilizada passando pela extrema direita de Paulo Guedes da Silva e até pela própria PIDE de Angola. Nessa mesma altura, Pequito Rebelo proclama que a ”Causa deverá limitar a sua acção no sentido da mobilização geral dos seus recursos em prol da dramática questão do Ultramar” Devia  pensar (e não era o único) que a guerra do Ultramar se resolvia num instante. Com a primavera Marcellista começou um longo Inverno restauracionista. Apesar de tudo, não poucos monárquicos, como por exemplo o embaixador António Séves (lugar-tenente de D. Duarte Nuno), ficaram convencidos que se Salazar não tivesse caído da cadeira, teria acabado por restaurar a monarquia…

Foi melhor assim?
Hoje em dia poder-se-á pensar que foi melhor assim. Se a monarquia tivesse sido restaurada graças a Salazar, provavelmente teria voltado a cair mais tarde, com um qualquer 25 de Abril. Para Barrilaro Ruas ”uma restauração salazarista teria dado muito mau resultado A partir de 61 já não é possível sustentar um regime na vontade de um só homem. Mesmo em 51 já seria complicado. O ideal teria sido em 1940, quando não existia ainda espiríto individualista. Também se pode pensar o contrário. Não seria impossível imaginar uma transição para a democracia, tal como aconteceu em Espanha. Podia ser que Salazar, Cansado de poder, quisesse aproveitar para se retirar, prestando um último serviço: a Restauração há tanto tempo prometida. Podia ter feito isso em 1958… Assim, talvez não viesse a acontecer o 25 de Abril. São possíveis várias reconstruções do presente através da correcção do passado, mas a realidade é que as possibilidades de ver restaurada a Monarquia ainda neste século foram talvez penhoradas pela crença num homem que nunca  mexeu um dedo por reviver no Reino de Portugal.
Franz-Paul Langhans, secretário particular de Salazar conta uma história que demonstra bem como Salazar associava a Monarquia a mera poesia. «Não sei a que propósito surgiu oportunidade única para se falar na bandeira nacional e em suas cores e arranjos heráldicos. Salazar, no seu tempo de colégio de Viseu, fez uma poesia descrevendo o simbolismo e significado da velha e liberal bandeira azul e branca.Lembrei ter tomado conhecimento de um estudo feito pelo então operoso heraldista Afonso de Ornelas. ”O que pretende Afonso de Ornelas?” perguntou Salazar. ”É modificar a bandeira? É um assunto algo transcendente e traz muitos casos complicados… E dúvidas … E, num ponto de vista político, tem também os seus quês”. Salazar fez uma pausa, como quem estava em meditação mais profunda e, depois, atirou-se-nos com esta: ”Mudar a bandeira?… nem pensar nisso… Era oferecer um símbolo à oposição…”»
[In ''Salazar visto pelos próximos (1946-1968)'', Bertrand Editora]
*Agradeço a colaboração do doutor Henrique Barrilaro Ruas, com quem tive o prazer de conversar sobre estes assuntos, no dia 25 de Fevereiro de 1993
- Rui Pereira de Melo, in Revista Kapa, Maio de 1993

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