Num extenso e interessante artigo publicado no Diário de Notícias, Mário Soares mostra-se preocupado pela evolução da situação portuguesa, apontando alguns dos principais problemas que minam a sociedade. Aqui deixamos em linhas gerais, o parecer do antigo presidente.
1. O Pessimismo nacional.
Presuntivo admirador da gente da Geração de Setenta, Mário Soares aponta o pessimismo nacional, como uma das principais causas da falta de perspectivas no país que ainda alguns teimam acreditar existir. De facto, toda a propaganda dissolutora que obteve o estatuto de situação anímica produzida pelas elites intelectualizadas saídas do Casino, condicionou quatro regimes. Minou a confiança na Monarquia Constitucional, pariu a absurda e inútil 1ª República, prolongou-se pela 2ª dos “pequeninos, sós mas orgulhosos” e conclui-se agora, na fase do estertor absoluto, na actual versão terceiro-republicana de todos os equívocos. Quem não se lembra dos centos de horas de lamúrias tecidas por políticos, sociólogos, comentadores ao estilo de filósofos de bar de faculdade, que da televisão transmitiram à população uma imagem de inevitável Finis Patriae? Quem insultou nos compêndios, os protagonistas da gesta que levou Portugal além-mar e lhe garantiu uma presença em todos os continentes? Quem ridicularizou – sempre por comparação com terceiros – o património nacional, amesquinhando-o sempre em proveito de modelos estrangeiros, num caricato exercício de macaqueação? Quem incutiu o complexo miserabilista e escusado da pequenez territorial que parece afinal vir condicionando toda a vitalidade própria de qualquer sociedade normal?
Criaram a síndrome do doutourismo a qualquer preço, desprestigiando as outrora tão necessárias e procuradas profissões técnicas e pior ainda, arrastando para o lodaçal da suspeita de favorecimento indevido, velhas academias que formavam quem efectivamente queria saber. Liquidaram o ensino superior, massificando a produção de licenciados sem perspectivas de um dia poderem vir a exercer uma profissão condizente com o pretenso estatuto social adquirido. Pior, o sistema quase tornou vergonhosas as profissões que Mário Soares hoje – e bem – aponta como necessárias, como a mão de obra não especializada dos “electricistas, canalizadores, trabalhadores para os campos”, etc. Aqui, o antigo presidente comete o erro comum de remeter esses trabalhos técnicos, para o campo pouco prestigiante da não especialização. Como se fosse possível confiar uma instalação eléctrica, a canalização de um prédio, os trabalhos do pedreiro, do soldador e até de pintura, a alguém que não seja especializado e capaz na matéria? É este inconsciente desdenhar dos “trabalhos menores” que conduz à actual situação de autêntico deserto em sectores produtivos essenciais ao desenvolvimento. Como Soares diz, …”é terrível!”
As ilusórias benesses vindas da Europa, não se traduziram num paralelo crescimento das aptidões nos mais diversos sectores do trabalho, antes pelo contrário. Se o consumo subiu em flecha devido ao facilitismo de um crédito que já teve melhores dias, as chamadas grandes obras públicas apenas tiveram como directa consequência, a importação da tal …”mão de obra não especializada”… que em Portugal passou a fazer, exactamente aquilo que os portugueses fizeram na França ou Alemanha dos anos sessenta. Como é evidente, a drenagem de recursos para o exterior tornou-se impossível de suster, até pelas compreensíveis razões humanitárias. Disso mesmo beneficiaria o Portugal pós-25 de Abril, cujos governos durante tanto tempo dependeram das muito aguardadas remessas dos emigrantes.
Mário Soares parece tomar-se de sobressaltos pelo triste espectáculo transmitido pelos pessimistas profissionais que vaticinam “desgraças (…) catástrofes (…) a desagregação do país ou pior ainda, o seu desaparecimento, como Estado”. Enfim, critica acerbamente a maledicência imperante, como se este estado de espírito não fosse coisa velha de mais de um século a que subitamente passasse a dar uma importância tardia!
O antigo presidente da república vem agora apontar alguns caminhos que sempre foram o rejeitado modelo proposto pelos monárquicos, fossem eles os da resistência ao costismo de 1910-26, ou os seus sucessores que passaram pela longa 2ª República. Mesmo na vigência do actual regime, a agricultura, o modelo de desenvolvimento sustentado – a ecologia, a defesa do património histórico na sua mais ampla definição -, a ética implícita ao sentido do Dever e Servir, sempre consistiram nas principais bandeiras dos sectores monárquicos mais intervenientes. Quando há vinte anos a tão incompreendida Nova Monarquia apontava para a inevitabilidade de um regresso ao convívio com os países que outrora integraram o todo nacional, os lancinantes gritos de protesto fizeram-se até escutar em áreas próximas de Belém, num arrazoado néscio de complots neo-coloniais, imperialismos anacrónicos ou pior ainda, acusando a organização de anti-europeísmo basilar. Hoje, o mundo político desunha-se na procura de alianças económicas e políticas em Angola, Cabo-Verde, Brasil, Moçambique, Timor e até em países que jamais tendo pertencido à esfera da administração portuguesa, surgem como oportunidades sonantes. Uma certa concepção de um programa de reabilitação nacional que veja Portugal regressar à acção no espaço extra-europeu, é uma necessidade imperiosa que agora apressadamente, os responsáveis do sistema parecem descobrir. Perderam muito tempo com as ilusões provincianas de um europeísmo que connosco pouco se importa e negligenciaram-se talentos e vontades. Hoje em dia, é quase um trabalho de imaginação delirante, conceber a possibilidade de ter existido uma administração pública de vastíssimos territórios no além-mar. Assim, para os portugueses que agora têm trinta anos de vida, a realidade de uma administração eficiente que ergueu pontes, construiu escolas, barragens, caminhos de ferro, hospitais, portos, organizou os campos e as cidades, parece uma hipótese tão longínqua como inverosímil. Mas existiu, isso é inegável. Fez-se obra no Ultramar e existia um sentido geral de serviço pelo bem comum que foi rapidamente encarado como incómodo passadismo de laivos imperialistas. Erro fatal.
Sem querer reconhecê-lo, Mário Soares revisita o programa do seu amigo Gonçalo Ribeiro Telles. Agora, julga urgente o regresso aos campos, quando nos seus tempos de promessas do El Dorado comunitário…”era coisa para esquecer”. Tal como os pérfidos e elitistas monárquicos desde sempre apontaram – já nos longínquos tempos do pombalismo, passando pela Regeneração fontista e pelos impulsos modernizadores do rei D. Carlos I -, a ocupação e dignificação do trabalho da terra, consiste numa prioridade absoluta. Assim é a situação em França, na Alemanha ou na Holanda, exemplos que além fronteiras servem para nos encher as mesas de especialidades eDelikatessen pagas a bom preço. Regressando aos conselhos ditados pelos propugnadores da especialização do trabalho e da oferta – também tivemos os nossos Adam Smith -, Soares diz que Portugal deverá ser um excelente e mundialmente conhecido produtor de …”vinho, azeite, cortiça”…, aos quais podemos ainda acrescentar os frutos secos, legumes seleccionados para exportação e uma infinidade de produtos que ainda artesanais, merecem uma especial atenção. Essencialmente, são estes os sectores de exportação que podem prestigiar o nome do país no estrangeiro. É afinal, o programa “tradicionalista” e consentâneo com as nossas possibilidades, competência e que os importadores aguardam, não esquecendo aqueles outros que pela excelência da inovação – o calçado e mobiliário, por exemplo – conquistaram o seu espaço. É uma certeza, a necessidade de investimento nas novas tecnologias que modernizam e adequam a economia ao nosso tempo e neste capítulo, a opção no favorecimento das energias limpas – aqui está outro “resquício tradicionalista” -, consiste numa meritória aposta deste governo.
Mário Soares prossegue o seu raciocínio, na clara apropriação do Programa da Monarquia. Aponta como essencial o regresso ao mar, …”as pescas, a marinha mercante, o desenvolvimento dos portos, a exploração das profundidades marítimas – a grande visão de D. Carlos I -, o estudo e preservação das costas”. Nada de novo, é o programa que urge implementar e valorizar e que tem sido negligenciado desde há um século.
2. A questão da Democracia participativa.
Um tema interessante, escorregadio e inédito na pena de Mário Soares, até hoje encarado como a personalização do próprio regime, onde a partidocracia se apoderou de todos os lugares disponíveis e mentes. O afastamento da sociedade civil , consiste no perigo que os monárquicos há décadas – e por experiência própria – vêem apontando como desfecho impossível de contornar. Se a administração pública se tornou no alvo a atingir pelas clientelas partidárias que na sua maioria desconhecem - ou se interessam – pelos meandros fastidiosos e complicados da burocracia que faz o Estado funcionar, tal se deveu à ânsia pelo controlo totalitário da sociedade por quem pretende conformá-la a esquemas de toda a índole, sejam estes os costumeiros pretextos ideológicos, ou a vulgar sinecura que garante a tranquilidade da inércia durante um período mais ou menos prolongado no exercício do “poder”.
No capítulo do equilíbrio dos poderes, Mário Soares pretende uma Justiça …”isenta, equitativa, não partidária, célere, independente e eficaz”. Caímos aqui no paradoxo absoluto, pois estando o regime completamente subjugado pelo Tratado de Tordesilhas informal establecido pelas direcções partidárias, torna-se impossível modificar o estado de coisas. Não existe uma real separação de poderes e verifica-se com conveniente e artificializado espanto, apromiscuidade interpartidocrática em todos os órgãos do poder, sejam eles a presidência, os tribunais, o governo e as autarquias. A partir daqui, os pólipos prosseguem a função asfixiadora através do controlo das empresas do Estado e mesmo no sector privado, sempre dependente e vassalo dos favores – quantas vezes sem concurso público?! – outorgados por quem manda no momento. Este sistema vive e medra na instabilidade.
A questão da Justiça, consiste apenas numa entre todas as outras, reflectindo-se até na acção das policias e consequentemente, na distorção dos próprios conceitos de liberdades e direitos que são espezinhados diariamente por uma certa imprensa a soldo nãos e sabe bem de quem.
É também com um sorriso, que verificamos estar M. Soares, a apontar pela primeira vez o dedo acusador ao regime do qual sempre se considerou um natural seguidor. Contudo, essa 1ª república de 1924-26, é apenas fruto da imaginação desculpabilizadora do antigo presidente, porque historicamente, trilhou aquele caminho de todas as subversões muito antes da sua proclamação em 1910. Todo o programa de descrédito, pessimismo, maledicência e porque não dizê-lo abertamente?, de subversão, correu ao longo de mais de trinta anos, contando com a quase paternal benevolência de um Estado já completamente tornado refém da própria partidocracia. No cimo, pairava ainda, intocável, a figura intemporal do Rei que desaparecido, deu o seu lugar a uma hoste de servidores de causas egoístas e interessadas no proveito próprio. Assim sendo, Mário Soares inconscientemente se torna vítima dos seus próprios postulados ou superstições.
3. Conclusão.
Mário Soares adopta parcialmente as conhecidas propostas programáticas de um sector de opinião que formalmente inexistente, tem uma voz em crescendo na sociedade. Os recursos tecnológicos postos à disposição de quem se interessa pela coisa pública, permitem o derrubar de mitos e o conhecimento da verdade escondida sob o manto do preconceito imposto pela propaganda. Sem o dizer, acabam por vingar as já antigas propostas de reorganização do Estado, desde o sistema eleitoral uninomial/misto, até à redução da Câmara Baixa, a criação de uma Câmara Alta não partidária, a necessária reorganização administrativa do território nacional – desde as regiões o poder local – e até, a possibilidade da democracia directa em núcleos mais ou menos reduzidos e bem definidos. O grave problema que todos os outros condiciona, consiste na falta de clareza quanto à divisão de poderes e o articulista parece tomar consciência do facto.
Se a instauração da Monarquia não consiste na panaceia para todos os males – foi afinal a promessa da sua deposição que em 1910 surgia como solução republicana para a redenção do país -, indica de forma inequívoca, a firme intenção na mudança que urge. Como sempre, a questão da vontade – que os marxistas tanto gostam de contornar, metamorfoseando-a de “mentalidades” – estará dependente da confiança generalizada na perenidade de um porvir pelo qual valha a pena combater, na sempre constante procura de deixar a herança aos vindouros. Foi assim que Portugal sobreviveu ao longo de séculos, erguendo a sua presença no mundo ao estatuto de que apenas uns tantosGrandes beneficiam. A Monarquia criará aquele estado de espírito essencial à ordem e prioridade do interesse geral sobre os caprichos ou cupidez de alguns. Mário Soares é um homem viajado e dá-se com os poderosos da Terra. Sabe que aquilo que se verifica nos países que mais admira – o chamado norte da Europa -, deve-se à construção de um Estado onde as regras se encontram imutavelmente bem definidas e nas quais a sociedade se revê. No fundo – não ousando afirmá-lo pelos conhecidos receios de conotação com o autoritarismo -, M. S. lamenta uma certa falta de ordem e autoridade democrática, sem a qual o conjunto social se pulveriza numa caótica indisciplina que desrespeita a Lei e a adultera ao sabor da conveniência de grupos. Tudo o mais virá por si, desde a perfeita certeza do posicionamento internacional de Portugal no mundo, à latente questão da educação – rigor, disciplina, prioridades na formação – ou ao governo e preservação do espaço que ocupamos e herdámos.
Não reconhecendo que há que mudar o essencial para que o país disso efectivamente se aperceba, o desabafo de Mário Soares consiste infelizmente, num estéril exercício da crítica que aos outros aponta como pecha. Se não lhe falta clarividência na análise, peca por recusar a conclusão necessária e que se espera. Para que a situação se modifique, há que enviar um sinal claro ao país. No entanto, cremos que a vaidade e o preconceito prevalecerão.
Publicado por Esquerda Monárquica
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