«UMA PARTE IMPORTANTE DA NAÇÃO PERDEU TOTALMENTE
A FÉ NO PARLAMENTARISMO, E NAS CLASSES GOVERNAMENTAIS
QUE O ENCARNAM; E TENDE A SUBSTITUI-LA POR OUTRA COISA,
QUE ELA AINDA NÃO DEFINIU BEM A SI PRÓPRIA.»
Artigo de Eça de Queirós publicado anonimamente na «Revista de Portugal», publicação editada no Porto, mas que Eça dirigia desde Paris. Este artigo foi atribuído durante muito tempo a Oliveira Martins, mas Ernesto Guerra da Cal comprovou a existência do manuscrito original autógrafo.
Neste artigo, Eça afirma que, com a crise política provocada pelo Ultimato britânico de 1890, a população portuguesa passou a pensar que «antes qualquer outra coisa do que o que está». O problema era saber o que era esta «outra coisa». Um governo autoritário, com base no exército, parecia improvável. Então o que se perfilava no futuro parecia ser ou uma «revolução feita de cima, uma concentração de força na Coroa … que não seria compreendida pela Nação», ou uma revolução vinda de baixo – a República, que para Eça «seria a confusão, a anarquia, a bancarrota.»
Acabava então perguntando, não apresentando naturalmente uma solução:
- «Que resta pois? Resta, como esperança, o sabermos que as nações têm a vida dura, e que o nosso Portugal tem a vida duríssima.» Sabendo que «entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema.»
A história veio comprovar que Eça de Queirós para além de ser um grande escritor, assim como um grande jornalista, como Filomena Mónica salientou, foi também um grande analista político. Este artigo previu os 40 anos seguintes. O reforço do poder real, com a «ditadura» de João Franco, apoiada por D. Carlos; a revolução republicana, que se tornou a anarquia que o autor previu, e a solução militar que era a menos previsível em 1890, mas que foi a que se mostrou a mais duradoira existindo durante 50 anos, de 1926 a 1976.
Depois do ultimatum de 11 de Janeiro e do frémito de indignação que percorreu todo o País até às mais obscuras vilas, houve um momento em que justificadamente se pôde supor que a Nação, enfim despertada do seu sono ou da sua indiferença, pronta a retomar a posse de si mesma, e certa de que a vida que vinha levando nestes últimos vinte anos a votava irrevogavelmente às humilhações e aos desastres, decidira, num ingente esforço de vontade, começar uma vida nova.
Não escaparam a esta ilusão cabeças que se prezam de friamente raciocinadoras. E quem estas linhas escreve, apesar de dois lustres inteiros de desilusões, chegou a crer que realmente existia no fundo da Nação, sob a sua aparente apatia, uma grande reserva de força, capaz de inspirar e de impor, sem resistências possíveis, uma reorganização política e económica do Estado.
A ilusão, como dissemos, em breve se sumiu por esses ares. Poucas semanas bastaram a evidenciar que não há no país uma força latente de onde pudesse vir o movimento de reorganização nacional, ou que, se a há (é sempre grato guardar uma esperança), o ultimatum do dia 11 e a perda de territórios maninhos de África, que quase ninguém sabia onde ficavam, não foi abalo bastante decisivo para a fazer despertar e operar. Nem todos os choques do ferro conseguem com efeito fazer saltar o fogo das entranhas da pedra.
Mas se fora das regiões da Política, na massa geral da Nação, o ultimatum não logrou produzir um movimento que viesse trazer transformações essenciais à nossa vida administrativa e económica, sucedeu que, dentro dessas próprias regiões da Política, esse mesmo ultimatum, e as manifestações tumultuárias que o acompanharam, vieram alterar o equilíbrio dos elementos regulares com que a Política jogava, fazendo aparecer nela elementos novos, novos factores, com que é forçoso de ora avante contar, e que, coisa estranha!, fazem o Portugal de 1890 politicamente diferente do Portugal de 1889. É esta nova situação que convém estudar com clareza e franqueza. Estender sobre ela um véu pudico, disfarçar-lhe discretamente, por falsas e injustificáveis conveniências públicas, os perigos que ela contém, mão a querer dissecar abertamente com o temor de patentear realidades desagradáveis, seria o mesmo que impedir uma cura ainda possível pelo desejo de não aludir a um mal manifestamente certo. Seria um crime de leso‑patriotismo.
I
O Partido Republicano não é certamente de criação recente. Desde 34, desde 20, sempre em Portugal existiram republicanos e jacobinos. Foi possível porém durante muito tempo contá-los, como se diz, pelos dedos de uma só mão. Eram ideólogos isolados, um pouco vaidosos do seu isolamento, vaidosos sobretudo da sua independência e isenção, e da superioridade intelectual que as suas ideias lhes davam ou lhes pareciam dar, de resto universalmente respeitados, e respeitadores eles mesmos do regímen sob que viviam e de quem por vezes aceitavam empregos.
O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Bertrand, moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a memória) chegou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele pertenceram alguns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos pelas suas ideias autoritárias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, as conferências chamadas do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política. Muito bem nos lembramos de ir lá ouvir o nosso saudoso amigo Augusto Soromenho, o erudito auxiliador de Alexandre Herculano, discorrer sobre Chateaubriand; e dias depois o Sr. Eça de Queirós apresentar, muito antes de Zola, as bases de uma nova estética, o Realismo. Apesar de não ameaçarem muito seriamente a ordem, ainda assim foram estas palestras julgadas subversivas pelo Duque (então Marquês) de Ávila, que as proibiu no dia em que um dos conferentes (o Sr. Batalha Reis, se não nos enganamos) ia falar sobre a «Divindade de Jesus». A imprensa de oposição exibiu a costumada indignação liberal; o Sr. Dias Ferreira fez uma interpelação ao ministério; e não se falou mais nas conferências do Casino, de que apenas resta como vestígio uma verdadeira jóia de crítica histórica, um folheto do Sr. Antero de Quental, hoje muito raro, sobre a Decadência dos Povos Peninsulares. O clube da rua do Príncipe morreu de inanição, e este ensaio jacobino fundiu-se ou perdeu-se no movimento socialista que, aí por 1871 e 72, ainda sob a iniciativa do Sr. Fontana e de outros, englobou em si uma considerável porção da classe operária de Lisboa. Esse movimento socialista, que era uma ramificação entre nós da famosa Internacional, fracassou quando essa sociedade, por motivos que não vem para aqui compendiar, perdeu a sua acção sobre a massa dos trabalhadores europeus. Depois disso a corrente republicana, que várias causas tinham continuado a desenvolver surdamente, aflorou de novo à superfície e fez sentir a sua acção por ocasião do centenário de Camões. E finalmente a sua entrada como partido organizado na sociedade política pode ser datada da questão de Lourenço Marques.
Não tomámos a pena para fazer a história, ainda pouco acidentada, do Partido Republicano. Essa história, por enquanto, reduz-se principalmente a números. Um deputado republicano por Lisboa há quinze anos não reuniria cem votos. Nas últimas eleições os republicanos tiveram alguns milhares de votos. E estes milhares de votos têm uma significação grave, não tanto por virem do apoio progressista (ainda que este apoio é também significativo e sintomático), mas por virem de uma forte massa de eleitores independentes, pertencendo pela maior parte às classes liberais e à classe comercial, que até aqui se abstinham de votar.
Um tal desenvolvimento de republicanos é obra recente destes últimos anos. E a sua causa tem sido simples e unicamente o descontentamento: isto é, o Partido Republicano tem-se alastrado, não porque aos espíritos democratizados aparecesse a necessidade de implantar entre nós as instituições republicanas, como as únicas capazes de realizar certos progressos sociais – mas porque esses espíritos sentem todos os dias uma aversão maior pela política parlamentar, tal como ela se tem manifestado, com o seu cortejo de males, nestes derradeiros tempos.
O Partido Republicano em Portugal nunca apresentou um programa, nem verdadeiramente tem um programa. Mais ainda, nem o pode ter: porque todas as reformas que, como partido republicano, lhe cumpriria reclamar, já foram realizadas pelo liberalismo monárquico. De sorte que se vai para a república ou se tende para ela, não por doutrinarismo, por urgência de mais liberdade e de instituições mais democráticas, mas porque numa já considerável parte do País se vai cada dia radicando mais este desejo: antes qualquer outra coisa do que o que está!
Esta é a mais recente e desgraçada fórmula política da Nação. É a fórmula que se ouve repetida por toda a parte onde dois homens se juntam a comentar as coisas públicas. Ora que pode ser essa outra coisa? Não pode ser o governo pessoal, fórmula para que apenas se inclinam alguns espíritos superiores, mas odiosa à generalidade da Nação, de todo democratizada, ou antes irradicavelmente impregnada de liberalismo; tem pois, na ideia dos descontentes, de ser a república, uma república, que, eliminando pelo mero facto do seu triunfo todo o pessoal do parlamentarismo e as suas práticas, proceda, sem desatender os interesses conservadores, a uma reorganização administrativa e económica da Nação. Essa reorganização parece-nos, a nós conservadores, que poderia ser realizada dentro da monarquia. Mas os descontentes respondem que a monarquia se acha inevitavelmente, fatalmente vinculada e soldada a esse pessoal do constitucionalismo, cuja incompetência e corrupção eles julgam ter sido super abundantemente comprovada em anos já longos de desgoverno que resta portanto uma única solução, a república: e que o momento vem chegando de salvar por esse meio o País, que já não pode ser salvo pela monarquia.
Cremos que ninguém, com uma clara inteligência das coisas, negará ser esta a corrente de ideias ou de impressões que tem desenvolvido o Partido Republicano. Do seu mais recente e inesperado engrossamento neste último ano houveram causas mais directas e mais especiais, internas e externas. Das internas a maior foi sem dúvida o último período da administração progressista. Não queremos por modo algum nestas páginas da REVISTA, onde só podem ter cabimento as apreciações genéricas de ideias, doutrinas ou movimentos sociais, fazer acusações específicas a grupos políticos. Mas ninguém hoje contesta, mesmo dentro das fileiras progressistas onde preclaramente sobram os homens sinceros e de bem, que os erros dessa administração foram fatais ao sistema parlamentar e à monarquia que é a sua expressão suprema.
A parte sã da Nação ficou seriamente desgostosa. E as lamentáveis desordens parlamentares desse triste ano político, as violentíssimas e desmandadas polémicas, as mútuas e terríveis recriminações com que, obcecados pela paixão, os partidos se feriam uns aos outros na sua honra, deixaram no País, que assistia espantado a uma tal lavagem pública de roupa suja, o sentimento desalentado que ele exprime por esta fórmula: – Tão bons são uns como outros! É esta uma outra das recentes e desgraçadas fórmulas da opinião pública em Portugal. Ora se, dos que estão, tão bons são uns como os outros no sistema parlamentar – para onde ir, para que apelar? Naturalmente para a república e para os homens novos e puros que ela possa trazer.
Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos, e feita aparentemente com uma cordura, uma generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil maneiras indirectas, desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um regímen político; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, qualquer obscuro articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material. A revolução do Brasil tranquilizando os ordeiros, excitando os ambiciosos, e dando confiança a todos pela esperança de apoio e recursos positivos – foi um golpe que das instituições brasileiras repercutiu indirectamente sobre as nossas instituições.
Não menor acção estimuladora trouxe aos nossos republicanos a consolidação da república em França, tão ameaçada, ainda antes das eleições de Setembro, pela coligação monárquico-cesarista. A França, pelo simples facto de ser república e como tal prosperar, é hoje o mais poderoso instrumento de propaganda republicana entre os povos latinos. Não se reflecte bastante que às qualidades da sua raça, não à forma das suas instituições, deve ela a sua prosperidade; e que a Exposição seria tão brilhante sob o reinado de Filipe V, como foi sob a presidência de Carnot. O que se vê é a República robustecendo o exército e a armada, construindo enormes obras de defesa, reorganizando superiormente os seus novos domínios, alargando imensamente a instrução, favorecendo o movimento dos negócios a ponto de tornar o próprio capital republicano, mantendo admiravelmente a ordem, e, apesar da sua democratização, conservando todas as elegâncias da vida e da sociedade. Tudo isto se atribui à república, quando é unicamente obra da França.
Finalmente entre as causas estranhas se pode contar o ultimatum do dia 11, que, se não arrancou o País à sua apatia, lhe deu subitamente o sentimento mais claro, e por assim dizer agudo, da sua própria fraqueza e desorganização; fraqueza e desorganização que, aparecendo dentro deste regímen, podem ser (e são) obra de certas fatalidades, mas são evidentemente também obra desse regímen. «Aqui está onde nós chegamos!» foi então a dolorida exclamação que resumia o sentir público.
Assim, progressivamente, se tem ido o Partido Republicano recrutando entre todas as classes e todas as profissões, a advocacia, a magistratura, o professorado, o comércio, e mesmo a propriedade rural, pela acção lenta de causas diferentes, das quais a maior incomparavelmente, e a única que incessantemente opera, é a de um forte descontentamento político.
E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que ele tem o estímulo constante de um imenso descontentamento individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado. O célebre publicista Edmundo About afirmava que nada era mais favorável aos governos em França do que o vento do sudoeste -porque é ele que traz as chuvas e prepara as boas colheitas. A oposição a um governo ou a um regímen nunca toma com efeito um carácter impaciente, violento e destrutivo quando cada um tem pão bastante na prateleira ou um saldo favorável no seu banco. Todo o regímen parece bom, pelo menos perfeitamente tolerável, ao pai de família que se sente na abundância. A mudança de regímen, e as perturbações sociais que lhe vêm inerentes, só lhes inspiram então inquietação, por poderem alterar ou anular as condições favoráveis em que a sua prosperidade se produziu. Entre nós é justamente o contrário que sucede. Ninguém vive na abundância e todos se encontram em dificuldades. Sofre o empregado pela pequenez dos ordenados; sofre o operário pela escassez dos salários; sofre o lojista pelos limitados meios de comprar de que dispõe o público; sofre o comerciante pela estagnação das transacções; e sofre o agricultor pela longa crise agrícola que lhe desvaloriza a propriedade. Todos sofrem; e ainda que muitos só se deveriam queixar da sua falta de iniciativa, de persistência, e mesmo de coragem civil, todos à uma se voltam contra um regímen que eles consideram como o causador de todos esses males públicos de onde datam os seus males particulares. Em todas estas classes se encontra com efeito a mesma opinião expressa pela mesma fórmula: -isto assim não pode continuar! Isto é a desorganização administrativa, política e económica.
Constitui esta massa já considerável de descontentes um partido militante e organizado? Não, certamente. Esta massa não está ainda filiada no Partido Republicano, não pertence ainda a clubes, não obedece ainda a um programa. Quando muito lê o Século. Mas constitui essa classe, por assim dizer, não-monárquica, que no Brasil permitiu que se fizesse a Revolução no espaço de duas horas, e que é tão perigosa para a segurança das instituições pela sua total indiferença e desamor, como o seria pela sua intervenção hostil e combatente.
Tais são os elementos de que já efectivamente se compõe ou com que condicionalmente já conta o Partido Republicano. É todavia este partido um perigo imediato e iminente para as instituições? Longe de toda a ilusão optimista, afigura-se-nos que esse partido, no dia de hoje, oferece um perigo ainda mínimo, porque tem a impotência de uma multidão a que falta a direcção. Entre os republicanos organizados, filiados, arregimentados, quantos se contarão que sintam confiança real no seu directório e seus chefes oficiais? Raros, segundo nos afirmam aqueles que por experiência própria o sabem. Pode haver, e há, por esses chefes simpatia individual; pode haver, e há, crença na sua sinceridade. Mas não há já a fé na sua coragem, na sua habilidade, ou na sua competência como organizadores de um movimento. E enquanto à massa dos descontentes, dos que chamamos não-monárquicos, esses nunca consentiriam certamente em admitir como chefes, e portanto como futuros promotores da reorganização nacional, os indivíduos, aliás pessoalmente estimáveis, que hoje têm a direcção aparente, e queremos supor que real, dos interesses republicanos. E sem desejar ser descorteses para com personalidades, – somos forçados a constatar que os actuais chefes republicanos, como tais, como chefes, fazem sorrir toda a parte séria da Nação.
Isto todavia adia simplesmente o perigo até ao momento em que homens de capacidades mais altas, ânimos mais decididos, e sobretudo de mais hábeis manejos, tomem conta do partido já organizado e da multidão descontente que em torno deles se agita, e dêem a este conjunto de forças vagas a direcção que elas reclamam e parecem prontas a aceitar de quem lhes traga uma garantia de êxito.
Mas ainda mesmo sem direcção, ou com uma direcção impotente porque incompetente, o Partido Republicano existe, exibe-se, fala, escreve, vota; e por este mero facto de existir obriga as classes governamentais a uma atitude legítima de defesa e de resistência. E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são necessariamente obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão. Os próprios republicanos por mais fanáticos não esperam decerto que o governo lhes entregue espontaneamente as secretarias, o tesouro e a direcção dos serviços públicos. Desde que do seu lado comece a acção – do lado do Poder deve começar a repressão. Ora esta repressão só se pode efectuar coarctando certas liberdades, – liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de associação – que entre nós penetraram profundamente nos costumes públicos, e que formavam além disso o único recurso deixado ao descontentamento para desafogar e se consolar. A perda do direito de usar (e sobretudo de abusar) dessas liberdades vai portanto originar uma imensa irritação, e um acréscimo de descontentamento tanto mais intenso quanto mais comprimido. As repressões são sempre as grandes fautoras das revoluções. Um partido perseguido cresce na proporção geométrica dessa perseguição. Na Alemanha, há sete anos, os socialistas reuniam menos de uma dezena de milhares de votos; vieram as famosas leis de repressão, e a política terrorista de Bismarck; e ao fim de seis anos os socialistas obtinham mais de um milhão de votos, e o próprio Bismarck caía. As classes governamentais sabem isto perfeitamente bem, e não procedem por obcecação ou por um leviano desdém das repetidíssimas lições da História. Fazem o que não podem deixar de fazer – o que é o seu dever que façam; sobretudo quando o partido de revolução reclama não um conjunto de justas reformas, que elas poderiam oportunamente conceder, mas a derrocação pura e simples de todo o regímen constituído, sem um programa melhor de ideias para substituir as dele, só com o fim de destruição e de deslocação de pessoas. A repressão porém só se pode fazer com certeza de êxito pacífico quando exista por trás, a sustentá-la, uma quase unânime corrente de opinião, uma larga maioria nacional, fielmente vinculada e aferrada às instituições monárquicas, só delas esperando a salvação, e não compreendendo que a Nação possa sem elas ser nação. Foi esta funda corrente de opinião, esta forte maioria nacional que faltou no Brasil ao ministério Ouro Preto. Existe essa maioria nacional entre nós, uma maioria amando tanto as Instituições que esteja pronta, e com alacridade, a dar por elas o dinheiro dos seus cofres e o sangue das suas veias? Infelizmente, por mais que lhe contemos e recontemos os elementos, não nos parece que exista. Na classe média uma minoria é republicana; uma parte importante é indiferente senão hostil; e uma outra parte tende para a hostilidade pelo mero facto de estar excluída do Poder e dos seus benefícios. No povo, o das cidades é republicano; e o do campo, alheio a princípios políticos, nunca se move e nunca se moverá talvez senão para defender o seu pão, se novos e fortes impostos lho ameaçassem.
Resta portanto uma metade da classe média fiel às instituições, porque fiel ao partido político que nesse momento as defenda. Mas foi essa mesma metade da classe média que no Brasil, acabando de dar uma larga maioria parlamentar ao ministério Ouro Preto, e estando justamente a promover uma subscrição para levantar uma estátua ao visconde de Ouro Preto (!) – ficou muito quieta nas suas casas, nos seus empregos ou nos seus escritórios, quando alguns jornalistas e alguns tenentes que iam reclamar uma mudança de ministério se lembraram de proclamar uma mudança de regímen! Esta curiosa lição da História actual, se outras não tivéssemos, bastaria a mostrar que confiança se pode ter, neste último quartel do século XIX, na fidelidade política da classe média.
Ora se esta maioria nacional falta às instituições, elas têm de se apoiar necessariamente numa outra força que, entre nós, só pode ser o exército.
II
Em geral desde que o regímen constituído, para se manter, necessita o apoio de uma força disciplinada; e quando, por outro lado, existe um partido de revolução que não pode tirar dos seus próprios elementos populares os meios precisos de acção, e só poderia triunfar pelo auxílio de uma força indisciplinada – o exército torna-se necessariamente o ponto para onde convergem todas as esperanças e o elemento de êxito com que contam todos os interesses políticos. O exército é assim fatalmente arrastado para dentro da esfera dos partidos; e começa logo a haver em torno dele uma surda e constante campanha de sedução ou de pressão. Pela lógica das afinidades e das ligações naturais, o partido de revolução procura atrair o sargento que é o mesmo que conquistar o soldado; e o regímen constituído procura muito justamente e com honrosa facilidade, conservar fiéis os coronéis e os generais. É isto o que durante longos anos se deu (e ainda se dá) na Espanha; e é isto o que desde já se vai anunciando entre nós, onde, como dizia ultimamente um oficial superior, «o exército está sendo requestado como uma menina rica». A responsabilidade da desorganização assim introduzida no corpo social (e quanto é formidável essa responsabilidade, a anarquia do Brasil o prova) pertence toda e exclusivamente, está claro, ao partido de revolução. Não tratamos porém aqui de averiguar a quem pertencem as responsabilidades de que a História mais tarde julgará, mas de constatar e enfileirar os factos tais como eles são e de os seguir nas suas consequências. Ora o facto incontestável (e que seria antipatriótico disfarçar) é que o Partido Republicano procura atrair o exército; e que, forçado a defender-se, o regímen constituído apela por seu turno para o concurso leal do exército, decerto inabalável na sua lealdade.
Mas pelo simples facto do exército ser a força essencial com que conta o regímen constituído, e com que conta o partido de revolução, ele toma fatalmente uma preponderância inesperada nos nossos destinos políticos. Dele parece depender tudo, e portanto ele torna-se tudo. Assim como em Inglaterra, e já agora em França, o boletim de voto é tudo, e sobre ele se exerce ardentemente a propaganda dos partidos, assim entre nós parece desenhar-se o momento em que a espada do exército será tudo, e sobre ela, e só sobre ela, se concentrará a acção e a influência dos que legitimamente possuem, ou que subversivamente pretendem, o poder.
Isto, se não nos enganamos, pode importar proximamente no advento do militarismo. Dirão (e dizem) os optimistas que o exército em Portugal nunca sairá da sua devida submissão ao poder civil. Assim o supomos. Mas nunca se deve basear um sistema de acção política no optimismo, na hipotética perfeição dos homens e das coisas, e em frases. O exército não é composto de entidades abstractas, e impessoais como princípios: é composto de homens de carne e osso, susceptíveis de todas as fraquezas e de todas as tentações humanas. Ora desde que uma classe sente que só ela é a força única, e que tudo gravita em torno dela, pode, mesmo mau grado seu, e pelo irresistível impulso da sua própria força, ser levada a tudo querer dominar, e fazer prevalecer, como superior a todos, o seu interesse de classe. Pode-o mesmo fazer por uma nobre ilusão patriótica, considerando que, desde que tudo em torno dela é fraco e impotente, e está morrendo dessa impotência e dessa fraqueza, no predomínio da sua força reside a salvação da pátria.
Decerto ao General Deodoro foi agradável e vantajoso passar de um comando numa província remota ao governo absoluto da nação, com cento e vinte contos de lista civil, um palácio para habitar, honras régias e a adulação de todos: mas é bem possível que o General Deodoro muito sinceramente acreditasse (visto que assim lho afirmavam os que da sua espada necessitavam) que ele, e só ele, podia fazer a felicidade do Brasil. E de resto a história está cheia de exemplos em que chefes militares muito candidamente viram no seu engrandecimento pessoal o meio único de promover a regeneração nacional.
É claro, claro como o sol, que não há o mínimo, o mais remoto sintoma de que possa surgir entre nós um general ambicioso. Mas dar uma importância suprema ao elemento militar é preparar o terreno propício ao desenvolvimento possível dessas ambições. Querer sistematicamente afastar esta suposição, declarando que «tal é impossível, que nunca tal se dará na nossa terra, porque o exército sabe o que deve à honra e à pátria, etc.», é fazer acto de imprevidência ou de ingenuidade, ambas culpadas. O homem de estado, digno desse nome, deve tudo prever, tudo calcular – e ter sempre presente que os homens são homens, nascidos com as paixões humanas, e não anjos, abstracções ou princípios encarnados. Eis de resto tudo o que convém dizer; porque nisto se encerra tudo o que convém meditar.
III
Assim viemos expondo, tais como os compreendemos, os elementos da crise política que se desenha, e que, nascendo da nossa crise crónica, a crise económica, se vai ajuntar a ela ajudando a agravá-la por diversos modos.
A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por um impulso que irresistivelmente a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam?
Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a confusão, a anarquia, a bancarrota. Além disso (é de urgente patriotismo falar com franqueza) a República entre nós não é uma questão de política interna, mas de política externa. Um movimento insurreccional em Lisboa, triunfante ou semi-triunfante, seria no dia seguinte um exército de intervenção marchando sobre nós da fronteira monárquica da Espanha. E se a Espanha, pela morte da criancinha inocente que é rei, se convertesse numa república conservadora – um movimento paralelo em Portugal, apoiado por ela e coroado de êxito, seria o fim da nossa autonomia, da nossa civilização própria, da nossa nacionalidade, da nossa história, da nossa língua, de tudo aquilo que nos é tão caro como a própria vida, e por que temos, durante séculos, derramado sangue e tesouros.
Por outro lado uma «revolução feita de cima», uma concentração de força na Coroa (que a muitos espíritos superiores, e que vêem claro, se apresenta como a nossa salvação), concentração, que, apoiada na parte mais inteligente e mais pura das classes conservadoras, procedesse às grandes reformas que a consciência pública reclama, não seria compreendida pela Nação irremediavelmente impregnada de liberalismo e que nessa concentração de força só veria uma restauração do absolutismo e do poder pessoal.
Que resta no meio destas duas soluções? Restaria ainda a solução quase milagrosa de que as classes conservadoras e parlamentares, cônscias enfim dos perigos que as envolvem, procedessem heroicamente à sua própria depuração e moralização; e, tendo readquirido por esse nobre regeneramento o apoio da maioria sã do País, se lançassem à obra patriótica e exclusiva de reorganizar a Nação administrativa e economicamente. Mas este milagre não é provável. Não há exemplo na História dos séculos de que uma classe conservadora, por uma lenta evolução da consciência, a si mesma se regenere, se depure e se moralize.
Que resta pois? Resta, como esperança, o sabermos que as nações têm a vida dura, e que o nosso Portugal tem a vida duríssima. E se os que estão no poder porfiarem sempre em cometer a menor soma humanamente possível de erros e realizar a maior soma humanamente possível de acertos, muitos perigos podem ser conjurados e a hora má adiada. O interesse de quem tem o poder (como dizia ultimamente, nestas mesmas páginas, tratando do Brasil, o Sr. Frederico de S) está todo e unicamente em acertar. Senão já por dever de consciência e de patriotismo, ao menos por egoísmo, por vantagem própria e individual, por ambição mesmo do poder, o esforço constante de um governo deve ser acertar. Entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema. Há períodos em que um erro mais ou um erro menos realmente pouco conta. No momento histórico a que chegamos, porém, cada erro, por mais pequeno, é um novo golpe de camartelo friamente atirado ao edifício das instituições; mas ao mesmo tempo tal é a inquietação que todos temos do futuro e do desconhecido, que cada acerto, cada bom acerto, é uma estaca mais, sólida e duradoura, para esteiar as instituições, Toda a dúvida está em saber se ainda há, ou se já não há, em Portugal, um governo capaz de sinceramente se compenetrar desta grande, desta irrecusável verdade.
Um espectador.
Fontes:
Eça de Queirós, «Novos Factores da Política Portuguesa», Revista de Portugal, Volume II, Abril de 1890, págs. 526 – 541.
Obras de Eça de Queiroz, Volume IV, (Introdução e fixação dos textos de Aníbal Pinto de Castro), Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, págs. 1022 – 1033.
Publicado por Rui Paiva Monteiro em "Causa Monárquica"
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