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Eclipsada a nossa antiga potência diplomática que era também salvaguardada pelo conhecimento das coisas militares e pelo decisivo contributo cultural - a língua, os nomes, a religião, a forma de organização de um Estado moderno, a gastronomia cujos vestígios encontramos em qualquer mesa tailandesa -, resta-nos bem mais do que poderíamos supor. O mundo da lusofonia, onde o Brasil é o factor decisivo mas não único, está em crescendo de importância e o ensino do português num país com o potencial da China, atingiu um nível que seria impensável até há bem poucos anos. A Ásia está à disposição de quem nela ousar investir e firmar posições. Mercados de muitos centos de milhão e uma base sentimental que permanece na memória de tantos povos desde o Guardafui até ao mar do Japão, eis um legado a não desperdiçar.
Os recentes acontecimentos nas ruas de Bangkok, não foram obsessivamente comentados pela imprensa nacional, porque ao longo de décadas aconteceram sobressaltos semelhantes e que chegaram a atingir uma gravidade bem superior ás imagens que parcimoniosamente foram surgindo nos noticiários. De tudo o que foi possível ver, nada é comparável à violência a que assistimos recentemente mais a norte - no Quirguistão - ou aos noticiários que ciclicamente relatam as atrocidades da Junta birmanesa ou de outros despotismos daquela parte do mundo.
A Tailândia é um país cujo modelo de organização institucional mais próximo se encontra daquilo que consideramos ser uma Democracia. Existe de jure e de facto uma separação de poderes e a prova disso mesmo, verifica-se na constante insistência da aplicação da Lei, sem que para tal as autoridades alguma vez tenham recorrido a medidas extremas, tão típicas de regimes ditatoriais que pontilham o mapa da região: na Tailândia não existe qualquer posto disponível para um Ferdinando Marcos, general Suharto, general Nguyen, ou Ne Win. Totalmente impensável será imaginar o florescente Reino entregue a uma imitação de Pol Pot, de Kim il Sung ou de um até hoje anónimo pequeno émulo do desaparecido Mao. Apenas quem não conhece o país poderá imaginar um cenário de impossível decoração institucional totalitária, pois isso representaria aquilo que os tailandeses desde sempre rejeitaram.
Tem estado em curso uma luta partidária que naquele país sofre de particularidades que descendem do legado da sua história, quando os potentados locais e durante séculos bastante autónomos, encontravam num difuso poder central, aquele ponto de convergência que esclarecia a soberania perante terceiros. O que parece ser uma novidade, é o surgimento de armas automáticas e outros aparatos ofensivos no centro da própria capital. AK-47, foguetes e granadas de mão e de bem clara proveniência, têm sido utilizadas nos confrontos de rua e embora alguns pretendam subestimar essa evidência, a verdade é que esse manancial bélico, aliado à pouco enigmática origem do caudaloso volume de dinheiro investido na subversão, pode obedecer a uma estratégia muito vasta de controlo de posições em toda a região. Já disso suspeitávamos e disso mesmo aqui demos conta. A sua desestabilização e a corrida aos seus recursos, poderá ser um dos motivos para aquilo a que temos assistido. O que parece um dado novo, é a forma de actuar de uma parte da facção amotinada, completamente submetida aos ditames dos antigos manuais ideológicos que instituíram as sangrentas ditaduras que ainda circundam as fronteiras da Tailândia. Hoje não está em causa a justiça que todos querem, mas sim os riscos da cedência perante ímpetos totalitários de uma pequena minoria. O Estado português não cederia, como não cederia qualquer outro dos nossos parceiros europeus. Assim sendo, compreendamos também que a Tailândia não queira ceder.
Bem fez a Monarquia do Rei Bhumibhol Aduliadej em ter-se mantido até este momento, afastada na tomada de um claro partido entre todos aqueles - e no campo vermelho a situação não é unívoca - que estão em liça. O Rei falará quando chegar o momento necessário para a acalmia dos espíritos, reorganizando-se o espectro político que possibilitará as reformas que afinal todos os contendores anunciam querer ver realizadas. É este o papel fundamental que o soberano tem sabido exercer na perfeição e de quem todos poderão esperar um sinal inequívoco para o diálogo. As palavras de Rama IX sempre foram as palavras de mais de sessenta milhões de tailandeses - sejam eles de que partido forem - e isso é uma verdade de impossível negação.
Portugal é um país que ao longo de séculos cumpriu exemplarmente todos os compromissos firmados com os seus aliados, por mais distantes que estes se encontrassem no globo que todos habitamos. Se alguns parecem desonrar os compromissos fundamentais que regem a pacífica convivência entre Estados - o governo tailandês anunciou ontem indícios disto mesmo -, Portugal deve continuar a ser para a Tailândia, aquele elo com um passado já longínquo, mas que justifica uma velha amizade ditada pelo respeito mútuo e ajuda nos momentos de necessidade.
Para nós, para o nosso governo, Rama IX é o grande representante e sucessor de Ramathibodi II que com D. Manuel I assinou a mais antiga aliança entre uma potência asiática e um pais da distante Europa. Ayuthaia, Bangkok - a siamesa Vila das Oliveiras ou Azeitão -, o rio Menão (Chao Prhaya), as ligações com Macau e com a Malaca onde ainda hoje está vivo o nosso secular legado, são um património desconhecido para muitos portugueses, mas nem por isso menos reais do que as comunidades luso-descendentes e as pedras de armas que deixámos em fortalezas, templos e entrepostos.
Nestas auspiciosas comemorações do quinto Centenário, os tailandeses deverão continuar a olhar-nos como aquele Portugal que sempre tão leal lhes soube ser nos bons e nos maus momentos.
publicado por Nuno Castelo-Branco
(Fonte: Blogue "Estado Sentido")
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