domingo, 10 de outubro de 2010

PROFESSOR DOUTOR ANÍBAL PINTO DE CASTRO

Para conhecimento de todos, reencaminho mensagem recebida do Senhor Prof. Doutor António Manuel Rebelo, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Vice-Presidente da Confraria da Rainha Santa Isabel, amigo e colaborador directo do Senhor Prof. Dr. Aníbal Pinto de Castro

Joaquim Costa e Nora
Presidente da Real Associação de Coimbra

*****

Prezados Amigos,

A missa de 7º dia por alma do nosso querido Mestre e Amigo será no SÁBADO às 19 horas na Sé Velha (e não como disse inicialmente a alguns, pois a informação foi entretanto alterada).
E porque é hora de honrar e de prestar homenagem à sua memória,  permitam-me a ousadia de vos enviar o texto do último elogio académico do nosso falecido Mestre, que este vosso amigo lhe teceu aquando do
doutoramento solene de alguns dos seus discípulos e que foi publicado na revista Biblos da Faculdade de Letras. Como eram dois os padrinhos  dos doutorandos, há uma parte que não lhe diz respeito, como é óbvio,  mas, havendo partes comuns, teria que reescrever todo o texto.
Desculpem esta ousadia que mais não visa senão partilhar com os seus discípulos e amigos algumas memórias do grande Académico e Homem que foi o Senhor Prof. Doutor Aníbal Pinto de Castro.

 Um abraço amigo,

 António Rebelo

****

"Magnífico Reitor-Cancelário,

Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Letras,

Sapientíssimos Doutores,

Ilustres Assistentes e Investigadores,

Caros Estudantes,

Excelentíssimas Autoridades,

Minhas senhoras, Meus senhores,

Da longínqua e densa bruma dos tempos nos chega, uma vez mais, o toque festivo, mas sempre evocativo, dos sinos da Universidade. Convocam a capelo o plenário dos Doutores, para testemunharem jubilosos a outorga de insígnias doutorais. Na verdade, ao virem aqui hoje estes novos membros da Academia pedir a investidura solene na dignidade mais alta que a Alma Mater Conimbrigensis confere, dão continuidade a uma das nossas mais vetustas tradições. Tornam-se, assim, parte integrante, por mérito e por direito, das sucessivas gerações dos Doutores que, desde tempos imemoriais, se viram galardoados com o prémio do seu labor e dos seus triunfos.

E aqui estamos a dar continuidade a essa liturgia multissecular, rica do eclectismo de símbolos e dos rituais religiosos, que reúne o hieratismo da Idade Média à sumptuosidade majestosa do Barroco. Dentro em breve, os Doutorandos irão receber o livro, símbolo da ciência; o anel, enquanto penhor da aliança à nossa corporação e da comunhão espiritual com os seus pares, mas símbolo também da perpetuidade cíclica da transmissão do saber; e finalmente a borla doutoral, que representa a coroa da vitória nas lides académicas.

Mandam as velhas praxes e estatutos da Universidade que, nestes actos solenes, os Doutorandos se façam acompanhar de um apresentante ou padrinho de reconhecidos méritos, que venha afiançar a sua dedicação ao estudo e à cultura, e garantir o seu propósito de corresponder à grande honra que lhe é conferida.

Quis a minha Faculdade, por intermédio formal do Senhor Presidente do Conselho Directivo, que recaísse sobre mim o honroso encargo de enaltecer publicamente os méritos dos ilustres Mestres que apadrinham os peticionários.

Mas, porque sei que os encómios, vindos de baixo, correm o risco de apoucar a figura dos elogiados, faço minhas as palavras de Zurara ao Rei, pedindo-vos, Magnífico Reitor, “com gramde rreueremça [...] que me perdo[eis] todollos falleçimentos, que em esta obra de minha parte forem achados, culpamdo em ello mais minha rrudeza e fraco emgenho, que a determinaçom de minha uoomtade”.

Dizia Jorge Luís Borges que “cada acto é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o claro presságio de outros que, no futuro, o repetirão até à vertigem”. Momento de comunhão do presente com o passado e com o futuro, a repetição dos actos e gestos rituais garante a intemporalidade da nossa corporação e contribui para a renovação permanente da sua glória. É a tradição que lhe aviva a consciência da sua vitalidade e mantém acesa a chama da sua essência. É aí que a Universidade de Coimbra, qual Fénix renascida, vai persistentemente auferir energias e exemplos para intervir no presente e se projectar no futuro.

Bernardo de Chartres, um dos grandes protagonistas do Renascimento do séc. XII, foi, de acordo com o testemunho de João de Salisbúria, o primeiro a utilizar a imagem dos anões aos ombros dos gigantes (nani super gigantum humeros) para representar o progresso da ciência, onde os mais novos sobem aos ombros dos seus mestres, logrando, assim, apoiados no saber que estes lhes transmitiram, erguer mais alto a ciência e transferir as fronteiras do conhecimento humano para horizontes mais vastos e mais longínquos do que os seus antepassados jamais conseguiram perscrutar, rasgando, desta feita, perspectivas novas ao entendimento da vida e do universo, e concebendo novas fulgurações de beleza.

O conceito medieval de Vniuersitas magistrorum ac scholarium, tal como consta na bula da fundação da nossa Universidade, denota essa comunhão demiúrgica de saber, fruto de uma cumplicidade fecunda entre mestre e discípulo.

Mas a Universidade é também um importante agente promotor da cidadania, porquanto educador dos valores morais, cívicos e humanos. A sua acção não deve ser exclusivamente didáctica e científica. Esta, por si só, destituída dos seus complementos espirituais, conduz ao materialismo e está sujeita ao isolamento, à desintegração, às conjunturas económicas, enfim, às volúveis contingências dos tempos.

Ora, poucos souberam cultivar melhor esse conceito de uniuersitas do que os ilustres Mestres que apadrinham os quatro Doutorandos e que, por isso, já granjearam um justo e merecido lugar na vetustíssima história da Alma Mater Conimbrigensis. Os Senhores Doutores Walter de Sousa Medeiros e Aníbal Pinto de Castro são dois dos professores que, na nossa Faculdade de Letras, mais prestigiaram a Universidade nas últimas décadas, pelo seu saber e amor ao estudo, pelos seus ensinamentos, pelo brilho do seu valor intelectual e científico, pela sua total dedicação à causa do ensino e da cultura.

Fazendo-me intérprete do sentir de sucessivas gerações de alunos destas duas figuras ímpares da nossa Faculdade, não quero também deixar de lhes testemunhar, neste dia, o preito da nossa admiração e gratidão.
O Senhor Paulo Sérgio Margarido Ferreira é apadrinhado pelo Senhor Doutor Walter de Sousa Medeiros; o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro paraninfa a Senhora D. Maria Teresa Duarte de Jesus Gonçalves do Nascimento e os Senhores Manuel Simplício Geraldo Ferro e Albano António Cabral Figueiredo, cujo currículo já nos foi apresentado com a engenhosa arte e mestria a que o Senhor Doutor José Carlos Seabra Pereira já há muito nos habituou.

O tratamento grave e formal, como convém à circunstância, trai a longa convivência e amizade, e o sentimento de sincera alegria com que vejo estes companheiros de tantas lides atingir tão distinta e importante etapa do seu cursus honorum.

Esta sala ainda guarda os ecos brilhantes das suas provas de doutoramento. Como o Príncipe dos nossos poetas dizia, é o "Caminho da virtude, alto e fragoso,/ Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso." E hoje vivemos um desses momentos “doces, alegres e deleitosos”.

Comum a todos é o grande valor das obras que têm publicado, a elevada competência no desempenho das funções docentes, honrando, assim, os seus Mestres, dos quais se tornaram dignos sucessores, e dando provas inequívocas de que são, já há muito, certezas ao serviço da Universidade.

O Senhor Manuel Ferro, poliglota e amplamente versado nas matérias de línguas e literaturas germânicas e românicas, por força das duas licenciaturas que possui, e do curso de Mestrado em Literatura Alemã e Comparada, é um especialista consagrado em poesia épica desde o momento em que estudou exaustivamente a recepção de Tasso na literatura portuguesa. As suas qualidades pedagógicas e científicas têm sido muito apreciadas pelos alunos dos vários cursos onde lecciona. Homem altamente responsável e consciente dos seus deveres, tem desempenhado com elevada proficiência, generoso brio e galhardia todos os cargos que lhe têm sido confiados. Extremamente sociável e comunicativo, é um digno sucessor do seu Mestre dentro e fora da Academia, pelo que se tem mostrado à altura dos pergaminhos que lhe foram transmitidos.

O Senhor Albano António Cabral Figueiredo tem feito uma carreira brilhante no domínio da Literatura Portuguesa Medieval. Poucos conhecem como ele as crónicas medievais. Com um espírito científico e uma objectividade exemplares muito se continua a esperar das suas invulgares qualidades de trabalho, inteligência, método e dedicação. Dotado de inusitadas capacidades de organização, fruto da minuciosa observação crítica a que sempre submeteu o seu trabalho de investigação, revela o rigor e o dinamismo que encontrou no seu Mestre.

Da jovem Universidade da Madeira vem o único rosto feminino deste escol de letrados, a Senhora D. Maria Teresa do Nascimento, promotora de muitos diálogos, científicos e humanos, emprestando à cerimónia a sua graça feminil e o seu espírito jovial, valorizando-a simultaneamente com a glória dos seus méritos científicos, que muito dignificam a nossa Academia.

O Senhor Paulo Sérgio Ferreira já enquanto estudante sobressaía pelo interesse científico, pela preocupação do rigor e pela curiosidade e desejo de aprender, sem se privar de buscar a ciência bem mais além do que lhe era ensinado na sala de aula, mas também se distinguia, enquanto ser humano, pela rectidão, pelo apurado sentido de justiça e pela pureza de sentimentos. Sendo Mestre e Discípulo actores e amantes de teatro, a sua dissertação de doutoramento em Literatura Latina, que explora o espectáculo e a pragmática teatral em Séneca, bem pode ser considerada, talvez com maior propriedade, a primeira dissertação em Estudos Artísticos. A sua juventude estuante de esperanças há-de engrandecer-se por certo ao serviço da nossa Escola. Aqui se apresenta, já detentor de um sólido saber teórico, fazendo jus à confiança que o Mestre nele depositou.

Nas qualidades dos verdadeiros discípulos revemos os méritos dos seus mestres. A consagração do discípulo é também a consagração do mestre, que vê assegurada a maior aspiração de um professor: a continuação da sua obra. Sentimos saudades das lições destes notáveis académicos, mas este sentimento é mitigado por encontrarmos no seu lugar alguns dos mais brilhantes e distintos discípulos que deles herdaram as mais elevadas qualidades humanas. É nesta reciprocidade contínua, nesta comunhão permanente de dádiva generosa e gratuita que consiste a noção de uniuersitas.

Paulo maiora canamus, dizia o Mantuano (Ecloga 4). Cantar tão ilustres personagens não ouso, pois careço de engenho e sobretudo de arte para tanto, mas celebremo-los em prosa que é, como dizia D. Francisco Manuel de Melo, o “estilo de que mais vezes se serve a verdade”. Árdua tarefa, sapientíssimos Doutores, é descrever em poucos minutos as fecundas personalidades humanas e científicas destas autênticas pedras vivas da nossa Alma Mater. Aos senhores apresentantes peço a devida vénia da pouquidade do meu engenho. Receio não ter a facúndia do verbo adequada ao que a circunstância exige, mas saibam Vas Ex as que para isso não me falta a vontade, de que sei que sois mais amigos.

Pouco parecem ter em comum, além das venerandas cãs. Todavia, revelam-se tão díspares, a um tempo na compleição e no temperamento, quanto se asseveram semelhantes nos interesses, na exigência, no rigor, na prática universitária, no labor científico, seja pela satisfação estóica do cumprimento do dever, seja em obediência ao preceito evangélico de rentabilizarem os talentos que lhes foram supernamente confiados.

Ambos de origem humilde, condicionada e marcada pelas estreitezas da vida, sempre souberam suportar as adversidades com estóico heroísmo. Residirá aí a veia altruísta e compassiva que sempre dominou as suas relações humanas, o seu carácter franco e acessível. Quem tem a felicidade de privar com tais Mestres sabe quão fecundo e enriquecedor é conviver com quem, mesmo fora do contexto da sala de aula, nunca se demitiu do seu múnus magisterial, enquanto agente transmissor do saber. Conviver com eles é, pois, estar em aprendizagem permanente.

Nas suas obras, revelam erudição, estilo de fino recorte literário, notável propriedade de linguagem, elegância do verbo, pureza da língua bebida nas fontes clássicas e nos seus mais directos cultores lusitanos. A feliz conjugação, neste acto solene, de dois dos mais exímios especialistas e praticantes da língua portuguesa é um verdadeiro hino à “última flor do Lácio”. A ambos os Mestres, lídimos defensores do idioma pátrio, são aplicáveis os célebres versos da Carta de António Ferreira a Pêro de Andrade Caminha: “Floreça, fale, cante, ouça-se e viva / A portuguesa língua, e lá onde for, / Senhora vá de si, soberba e altiva”. Os autores que têm merecido a preferência na investigação do Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro são justamente os que mais se evidenciaram nessas qualidades: Camões, o “Patriarca dos poetas portugueses”, no dizer de António Correia de Oliveira, o Pe. António Vieira, esse “imperador da língua portuguesa” na expressão de Pessoa, Camilo e Eça, escritores irrepreensíveis e modelares.

Ambos criaram escola, como teremos ensejo de verificar mais adiante, mas os Doutorandos, que eles hoje apresentam à Academia, são mais um exemplo de confirmação da inquestionabilidade deste facto.

Ambos partilham ainda o amor pela Itália e pela língua e literatura italianas, e os estudos que fizeram em Florença e em Roma. Nessa dedicação foi o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro distinguido pela República Italiana com a Comenda da Ordine al Merito della Republica Italiana e com a Targa d’Argento.
Mas vejamos com mais pormenor os seus percursos académicos.

O Senhor Doutor Walter de Sousa Medeiros nasceu em 12 de Junho de 1923, na cidade de Ponta Delgada. Concluídos os estudos liceais no mesmo estabelecimento em que estudara Antero de Quental, trocou as cerúleas e cristalinas ondas e o negro reluzente das cálidas pedras açorianas pelas “doces e claras águas do Mondego” e pela fulva claridade da alvenaria coimbrã, e às terras de Aeminium veio cumprir seu fadário.

Matriculou-se, pois, no ano lectivo de 1944-45, na Faculdade de Letras de Coimbra, no Curso de Filologia Clássica, que teve de suspender, transferindo-se para Lisboa, onde passou a trabalhar. Licenciou-se em 1953, com distinção, na Faculdade de Letras de Lisboa, apresentando uma dissertação intitulada Aires Barbosa: Escorço biobibliográfico, seguido do texto e versão da “Antimoria”, onde revela já os seus dotes excepcionais de tradutor, conseguindo aliar a fidelidade ao texto original com a elegância e clareza de linguagem. No mesmo ano foi contratado como segundo-assistente daquela Faculdade.

Em 1956, regressou à Faculdade de Letras de Coimbra, concentrando, agora, os seus interesses no estudo da lírica grega. Regeu cadeiras de línguas e literaturas clássicas, de Linguística Comparada, de História do Teatro, entre muitas outras. Ao iniciar a sua investigação sobre Hipónax de Éfeso, cedo chegou à conclusão de que se tornava imperioso começar pelo estabelecimento crítico do texto que reflectisse os progressos da ciência, tarefa que, na opinião de vários críticos internacionais, era bem árdua e espinhosa e facilmente podia fazer desesperar o investigador. Viajou para Roma e Florença, para preparar a dissertação de doutoramento, onde seguiu as lições de Mestres de renome, como Ettore Paratore, Giacomo Devoto, Gennaro Perrota, entre outros.

Em 1961 apresentou-se a provas de doutoramento com uma dissertação sobre Hipónax de Éfeso. I-Fragmentos dos Iambos, em cujo exame foi aprovado com a brilhante classificação de 19 valores. A crítica não deixou de enaltecer o interesse científico da sua dissertação de doutoramento abrindo-lhe, assim, as portas da fama e da glória além-fronteiras. Alguns dos mais conceituados estudiosos das letras greco-latinas exprimiram-se em tons altamente elogiosos, como fez questão de evidenciar o Senhor Pe. Doutor Avelino de Jesus da Costa, quando, nesta mesma Sala, teceu o elogio do Senhor Doutor Medeiros por ocasião do seu doutoramento solene. E, porque, como dizia o bom Horácio, bis repetita placent (cf. Ep. ad Pisones ou Ars Poetica 365), permitam-me fazer-vos revisitar apenas dois exemplos do eco internacional que a sua edição crítica, tradução e estudo obteve junto dos eminentes especialistas da época.

Denys Page, o celebérrimo editor dos poetas líricos e uma das maiores autoridades na matéria, escreveu: “it is an important work of scholarship, full and clear and very sound in judgement ... and am really delighted to have this admirable edition”. Numa recensão em latim, W. J. W. Koster, o categorizado metricista holandês, afirmava que “Esta dissertação é digna da antiga glória da Universidade de Coimbra” (antiqua gloria universitatis Conimbricae digna est), e que, “na reconstituição do texto, trabalho extremamente árduo e de resultados aleatórios, Medeiros mostrou ser um filólogo erudito e prudente” (In textu constituendo, quod opus molestissimum et aleae plenum est [ ... ] Medeiros philologum eruditum et cautum se praestitit). E concluía que, para compreenderem devidamente a tradução portuguesa, os filólogos clássicos deviam estudar português (En nova lingua philologis addiscenda). Até a trabalhar na literatura grega, o jovem Doutor promovia involuntariamente a língua de Camões!

O Senhor Doutor Walter de Medeiros é professor catedrático de Literatura Latina desde 1972, tendo-se jubilado em 1993.

Lançando raízes nos bons conhecimentos que tinha das línguas clássicas, o Senhor Doutor Medeiros revelou, desde o seu tempo de estudante, um particular interesse pela língua portuguesa, abrindo, no dizer de Filinto Elísio, “a antiga, veneranda / fonte dos genuínos clássicos” e “rompendo as minas gregas e latinas”. O Senhor Doutor Manuel de Paiva Boléo já havia ficado impressionado com os conhecimentos do jovem estudante nas respostas que deu ao famoso inquérito linguístico, de tal forma que as considerou dignas de serem incluídas nas suas obras.

O seu saber, haurido de um profundo domínio das origens da língua portuguesa, no compulsar diurna nocturnaque manu dos léxicos latinos, gregos e portugueses, esses “arquivos da origem e da etimologia das palavras”, está bem patente não apenas na clareza e na genuinidade da expressão, na propriedade do verbo, de que é um explorador incansável, na sua fina e puríssima sensibilidade de falante da nossa língua, que o Árcade António Dinis da Cruz e Silva qualificou de “Primogénita filha da latina”. Está também presente, e de forma sistematizada, nas recensões a léxicos e dicionários, e em muitos estudos que publicou, prestando, assim, um valioso contributo à lexicografia portuguesa, não fosse ele discípulo do Doutor Francisco Rebelo Gonçalves.

É que o Senhor Doutor Walter de Medeiros, além de outros cargos de relevo, tem integrado comissões e grupos de trabalho, constituídos expressamente para elaborar estudos, emitir pareceres, formular propostas, resolver problemas sobre os mais variados aspectos da língua portuguesa. Saliento aqui apenas a CNALP, a Comissão Nacional da Língua Portuguesa. A extrema pertinência das lacunas e imperfeições que aponta e. g. ao Novo Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, em recensão publicada no Jornal de Artes e Letras, e a profunda erudição com que o faz constituem um exemplo bem eloquente da extraordinária competência do seu vasto saber nestas matérias. Por isso, o seu categorizado parecer nesta área da lexicografia, da terminologia técnica e científica, é constantemente solicitado por colegas de várias Faculdades e Universidades, por instituições públicas ou privadas, por personalidades de diversas áreas da cultura. É uma pena, e uma grande perda para a linguística portuguesa, que os pareceres que lhe foram solicitados por colegas das ciências da vida e das tecnologias, a propósito da criação de neologismos, por exemplo, não tenham sido publicados. Na sua humildade, o Senhor Doutor Medeiros considerá-los-á talvez demasiado insignificantes para serem dados à estampa, mas seriam seguramente preciosos documentos para os estudiosos da terminologia linguística.

Com todo este interesse pela língua portuguesa, é bem de compreender que tenha sido o Senhor Doutor Manuel de Paiva Boléo o seu apresentante, quando em 20 de Março de 1966, o apresentante de hoje recebeu as suas insígnias doutorais.

Seria inadequado ao carácter desta cerimónia inventariar as largas dezenas de publicações do Senhor Doutor Medeiros que se repartem por centenas de estudos monográficos de investigação pura; edições críticas de textos clássicos; escritos de índole didáctica ou de divulgação cultural; extensas e eruditas recensões de crítica filológica e literária, pareceres científicos ... – trabalho insano de laboriosas lucubrações em que ele aplica o seu espírito meticuloso e solerte, e de quem uma vasta obra documenta o saber, a probidade, o método, aquele gosto da perfeição que põe em todas as coisas, principiando pela própria caligrafia.

Além da literatura grega, estudou a literatura latina e novilatina, incluindo textos medievais, como o Codex Calixtinus, mas foi à literatura latina que consagrou a parte de leão do seu fecundo labor científico. Embora se tivesse notabilizado no estudo de autores como Virgílio, Horácio – que, apesar de menos poeta do que o primeiro, era “mais humano, mais próximo do nosso coração” – Propércio, Ovídio, Séneca, – que “conheceu como poucos a miséria humana” – Petrónio, Marcial, Apuleio, além de muitos outros que foram objecto do seu estudo, entre os quais se contam escritores das literaturas portuguesa e italiana, preferia estudar “tragédias e comédias, que debatem os problemas eternos do humano”, sobretudo Terêncio, “que está mais próximo de alguns problemas do nosso tempo: o conflito de gerações, o drama da incomunicabilidade humana, o esforço para congraçar irmãos desavindos”.

Um dos seus grandes méritos foi o pioneirismo na criação de uma verdadeira escola de tradutores que dirigiu, ao longo de várias décadas, na segunda linha de investigação do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos e que deu inicialmente origem a 36 obras publicadas na colecção de Textos Clássicos do INIC e que, depois da extinção deste, tiveram continuidade em muitas colecções de outras editoras, mesmo de outros países do mundo lusófono. Se há quem tenha dignificado o laborioso e árduo trabalho de tradução dos autores clássicos em Portugal foi certamente o Senhor Doutor Walter de Medeiros. Esta escola de tradução é uma das suas principais marcas distintivas.

Ele próprio é um tradutor exímio, dificilmente superável, vertendo o mundo na expressão cristalina do verbo, desafiando a inefabilidade do pensamento, combatendo a rígida inflexibilidade dos códigos linguísticos e literários, em suma, praticante incondicional da regra dos três CCC: clareza, correcção e concisão. Residia aqui o seu segredo.

As suas traduções das Bucólicas de Virgílio, das odes de Horácio, do Satyricon de Petrónio, do Asinus Aureus de Apuleio, dos epigramas de Marcial e de muitos, muitos outros autores e obras, circulavam avidamente entre os seus discípulos... Era aí que ele se revelava um verdadeiro ilusionista da palavra. As suas traduções eram valiosas pela literariedade da versão, resultante do método sério, meticuloso e cuidado que ele lhe aplicava, seguindo sempre o preceito horaciano do labor limae. A palavra, assim burilada, ficava de tal forma encastoada na frase que, qualquer alteração que se introduzisse parecia fazer desconjuntar toda a obra de arte. E, no entanto, ele fazia-o. Mesmo perante traduções que os seus discípulos consideravam perfeitíssimas, ele se mostrava insatisfeito com o resultado e refazia a tradução resultando daí nova obra prima, deixando os discípulos repartidos na sua preferência.

É que o Senhor Doutor Medeiros era também de um escrúpulo inexcedível no processo de tradução. Procurando ser o mais tradutore e o menos traditore possível, consumia-o a impotência de combinar a expressão, a concisão, o ritmo e a sonoridade originais, talvez porque se impunha a si próprio padrões demasiado elevados de perfeição.

Muitas dessas traduções continuam inéditas, o que representa uma grande perda para a cultura portuguesa. Publicou sobretudo comédias de Plauto e de Terêncio. Preconizava que a tradução de um drama clássico procurasse “também, sem prejuízo do rigor científico, ser uma versão representável”. Daí as rubricas de cena, tão apreciadas pelos críticos, que facultam ao leitor uma visão clara e precisa da evolução da peça no palco e fornecem às possíveis trupes teatrais indicações preciosas, ainda que fruto de uma leitura pessoal, por forma a tirarem melhor partido da representação. Daí também as eruditas anotações que, no seu dizer, “aclaram e justificam a tradução; desenvolvem aspectos culturais indispensáveis à compreensão de certas realidades do mundo greco-latino; criam pontos de partida para o estudo de outras obras (...); servem, antes de mais, os interesses do aluno das nossas Faculdades de Letras” – repare-se na sua preocupação de colocar o labor científico ao serviço da pedagogia.

Na tradução, exigia que, além do sentido, se procurasse respeitar também todos os valores estilísticos, todas as conotações sem trair as valências originais. Mas, perante a densidade linguística de duas línguas sintéticas, como o latim e o grego, não é fácil conservar o traço poético no processo de versão para uma língua tão analítica quanto a nossa. É então que se ergue a “cruz do tradutor”, como o Senhor Doutor Medeiros intitulou uma série de mais de uma dezena de artigos dedicados aos complexos e imbricados problemas do processo de tradução. Então, o tradutor, “espera que, mais além, outro lhe ofereça a redenção que não logrou”.

Homem de uma correcção e polidez inexcedíveis, até no seu labor académico evitava a brejeirice das personagens plautinas. Veja-se a sua destreza em verter o texto para português, contornando a mais pura vernaculidade latina, capaz de fazer corar as pedras da calçada, com a mesma pudica elegância, dignidade e polimento que lhe são tão característicos, sem atraiçoar, todavia, nem o texto, nem a respectiva uis comica, o que, só por si, é uma lição para muitos dos hodiernos comediantes.

Como professor, era o paradigma inconfundível e incontestável da mais perfeita e exemplar pedagogia universitária.

As suas aulas tinham voga extraordinária e a elas acorriam muitos alunos de outras Faculdades, atraídos por aquele seu jeito ímpar e inimitável de verdadeiro cultor da arte de ensinar, pela clareza diáfana e aprazível da sua exposição, ávidos de sentir a própria poesia, escutando aquela sonoridade maviosa e pausada da sua voz, sedutora pelo exotismo do timbre micaelense, que, absorta nas profundezas mais arcanas dos seus pensamentos, extraía verdadeiros diamantes que faziam rebrilhar a audiência em íntima sintonia com as suas palavras. Dele se poderá com propriedade dizer como Cícero citando Homero: “Da sua língua fluía o discurso mais doce do que o mel”. (Cícero, De Senectute 31: Ex eius lingua melle dulcior fluebat oratio). Era assim que, fiel à tradição dos clássicos, conciliava o utile com o dulce, cativando e encantando gerações de estudantes.

Disse em tempos que “uma aula, para ser acompanhada com proveito pelos alunos, tem de ser não apenas interessante, mas convivente, virada tanto quanto possível para os problemas do homem actual”. Exímio na arte de ensinar, imprimia a cada aula a estrutura de um drama clássico, tranformando o estrado em palco de teatro; e o tempo parava; e o aluno assistia embevecido à representação do drama humano. Embora se considerasse “não um poeta, não um artista, mas um amigo da arte, um amigo da poesia”, identificava-se com o poeta e sentia com ele todas as palavras do texto. Na cadência ritmada da sua inconfundível prosa, que valorizava e colocava em evidência a mais ínfima partícula, o mais insignificante grafema, o mais imperceptível fonema, era poeta sem alguma vez o pretender ser. Nas suas palavras sentia-se o pulsar pungente do seu coração de poeta, fingindo a indisfarçável vibração emotiva dos sentimentos humanos, ora dolorosos, ora jubilosos, com os quais os seus ouvintes e leitores se identificavam e nessa simpatia se deixavam enlevar uno corde.

A constante e desvelada assistência que ele dispensava aos estudantes traduzia a projecção da humanidade para o campo pedagógico, pois procurava “tratar os alunos como seres irrepetíveis, diversificados, dignos de compreensão e respeito, sempre estimáveis”.

O fino trato e a impecável cortesia que todos lhe reconhecem no relacionamento quotidiano com colegas, discípulos e amigos são qualidades naturais que estão na base da sua irradiante simpatia humana.

Pelo menos enquanto alcança o meu conhecimento dos factos, nunca o conheci alterado. A todos prodigalizava os tesouros da sua natural bondade, da sua cativante afabilidade e da sua inesgotável simpatia. Um verdadeiro construtor da paz. Um verdadeiro humanista.

“Sem Poesia, não há Humanidade”, dizia Teixeira de Pascoaes. Mas sem humanidade, também não há poesia. Não é só no relato do Livro do Génesis ou no mito de Prometeu que o homo provém do humus. Também na etimologia isso acontece. A humildade é, pois, uma característica inata à humanidade. Mas o homem torna-se presunçoso. Altivo, perde a humildade, deixa de ser humano. É na virtude da humildade que em grande parte reside o segredo da seriedade e do progresso do saber e se reconhece a grandeza do académico. Admirador profundo da humanidade dos clássicos, particularmente de Terêncio, o Senhor Doutor Medeiros foi sempre um verdadeiro cultor da humildade, repetindo frequentemente com Sócrates: só sei que nada sei.

Em tudo se sente a presença viva, não apenas do universitário e do letrado de inteligência lúcida e do saber reflectido, mas a presença do Homem, na lealdade do seu carácter, na verdade e franqueza das suas atitudes, na humildade e simplicidade do seu trato pessoal e que constituem uma das notas mais marcantes da sua personalidade.

Dos remansos bucólicos, de verdejantes outeiros e graciosos vales de Cernache, ora fenecentes dos primeiros rigores outonais, é oriundo o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro. Aí nasceu em 17 de Janeiro de 1938. Em 1955, concluía os estudos secundários em Coimbra, no Liceu Normal de D. João III, com a média final de 18 valores. Cinco anos depois, licenciou-se com 18 valores na Universidade de Coimbra em Filologia Românica apresentando a dissertação intitulada Balzac em Portugal. Contribuição para o estudo de influência de Balzac em Portugal e no Brasil. Foi de imediato contratado para Assistente de Filologia Românica da sua Faculdade, dando, assim, início a uma fecundíssima carreira de mais de 40 anos, onde regeu cadeiras de Literatura Francesa, Literatura Portuguesa e Estudos Camonianos, e cursos de Mestrado em Literatura Portuguesa e em Estudos Clássicos. Aí, continuou a afirmar como professor as fortes qualidades que já tinha revelado como estudante. Não lhe faltava, como dizia Camões, o "honesto estudo / Com longa experiência misturado, / Nem engenho, [...] / Cousas que juntas se acham raramente".

Já enquanto escolar e depois doutorando tinha uma intuição especial para prever e antecipar as novas vias de investigação que se desbravavam no horizonte dos estudos literários. Procurava, então, conciliar o que de melhor as novas teorias literárias lhe ofereciam com a tradição multímoda dos métodos filológicos da escola em que se formara. Desse eclectismo resultou um método inovador que soube transmitir aos seus discípulos.
Em 1973, apresentou na mesma Universidade a sua dissertação de Doutoramento – Retórica e teorização literária em Portugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo – classificada com a nota máxima por unanimidade. Trata-se de um trabalho ingente de investigação, num campo quase inexplorado. Este verdadeiro opus magnum, agora em segunda edição, é ainda hoje uma obra de referência – e, pela análise aturada e exaustiva, pela fina acribia e inovação dos seus métodos, podemos mesmo afirmar que o continuará certamente a ser nas próximas décadas –, uma obra imprescindível para o cabal conhecimento da teoria e do gosto literários em Portugal, desde o Renascimento ao Neoclassicismo.

A sua actividade de professor universitário, interrompida apenas por motivos alheios à sua vontade, pautou-se sempre por uma entrega incondicional à ciência e por uma dedicação inexcedível à sua Universidade de Coimbra.

Teve a constante preocupação de formar especialistas e fazer discípulos ao longo dos vários cursos de graduação e pós-graduação que regeu em várias universidades portuguesas e estrangeiras. Desse trabalho resultaram cerca de 25 dissertações de Doutoramento e mais de três dezenas de teses de Mestrado.

Professor Catedrático desde 1981, aposentou-se, por sua iniciativa, em 2005. Nem mesmo desde então se deixou invadir pela lassitude, continuando a produzir com diuturno mas sereno afã, tal como o fizera ao longo das quatro dezenas de anos em que deu à Universidade o melhor do seu vastíssimo saber.

Na sua incansável actividade de investigador, há muitos aspectos a considerar. São tantos os domínios e temas em que deu provas da sua probidade cientifica, tão vasta a plêiade de autores portugueses a que tem votado a sua investigação, que não caberia aqui enumerá-los, quanto mais descrever as incontáveis obras e trabalhos que a cada um deles consagrou e que, por já sobejamente conhecidos, me dispenso de citar.

A sua copiosíssima produção científica percorre todas as épocas da Literatura Portuguesa, da Idade Média ao séc. XX. Os discípulos que ele apadrinha nesta cerimónia são, como já tivemos ocasião de ouvir, o exemplo vivo da amplitude temática e cronológica do seu saber. Limito-me apenas a referir que ele privilegia sobretudo os períodos clássico e moderno – designadamente as obras desses grandes vultos da nossa língua que foram Camões, Padre António Vieira, Camilo e Eça de Queiroz, ainda que ascenda a mais de duas dezenas o número de autores que têm sido objecto da sua investigação (e. g. D. João I, Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, António Ferreira, Diogo Bernardes, Aquiles Estaço, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, D. Fr. Amador Arrais, Fr. Luís de Sousa, P.e José de Anchieta, Marquesa de Alorna, José Anastácio da Cunha, António Nobre, Almeida Garrett, António Sardinha, Hipólito Raposo, Eugénio de Castro, Afonso Lopes Vieira, Tomaz de Figueiredo e Miguel Torga, entre muitos outros).

Discorreu assim por vastos domínios do saber, oferecendo à contemplação dos seus leitores uma obra de extraordinária projecção, sobretudo nas áreas da História da Teorização Literária, Literatura Comparada, Crítica Textual, História da Cultura, História Religiosa, História do Livro e das Bibliotecas...

O bom domínio da língua portuguesa e o excelente conhecimento das clássicas regras de retórica fazem dele um orador exímio e um não menos versado e talentoso cultor do género epistolar, num estilo inconfundivelmente elegante, fluído e vibrante. Foi, pois, sem surpresa que se tornou num ensaísta laureado com o Prémio Internacional de Crítica Literária Jacinto do Prado Coelho.

A sua projecção cultural e científica estende-se extra muros. Hoje é um Académico consagrado no espaço lusófono e uma referência internacional na literatura portuguesa. É membro da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa da História, da Real Academia da História de Espanha, da Academia Nacional de la Historia de Venezuela e de muitas e prestigiadas sociedades científicas nacionais e internacionais. Marca ainda presença em algumas das mais prestigiadas editoras nacionais. Assim, é director da célebre Verbo, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, de Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesas e membro do Conselho Editorial da Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Nele encontramos, enfim, o universitário pleno, em cuja admiração não sabemos divisar o orador claro e brilhante, o investigador consagrado, a autoridade que se impõe pelo saber, o promotor dinâmico, inigualável na sua capacidade de realização.

Herdeiro mais genuíno de várias gerações eruditas de académicos, no mais amplo sentido do termo – onde cabe o saber científico, a veia pedagógica, o modo sério, digno e íntegro de estar na vida –, o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro soube transmitir às gerações mais novas não só o saber, mas também o espírito verdadeiramente universitário e os valores que nortearam os Mestres que outrora se sentaram neste claustro.
Quem, com mais sabedoria e ardor, porfiou em acentuar, mais pela eloquência do seu exemplo do que pelo verbo, o significado e a missão do professor universitário?

Numa entrega que não conheceu desfalecimentos nem quebras de ânimo, apesar de alguns momentos de desencanto e de injustiça por que passou, colocou-se sempre ao serviço desta segunda mãe: a sua e nossa Alma Mater Conimbrigensis, à qual sempre consagrou o melhor do seu esforço e do seu talento. Ressoam ainda hoje neste mesmo claustro as célebres palavras de Camões com que o Mestre exprimiu o amor e dedicação à Universidade, a quem “mais servira, se não fora / para tão longo amor tão curta a vida”. Servir desveladamente esta Instituição é um imperativo da sua consciência de universitário. Daí a plena vivência de todos os seus problemas, dos mais simples aos mais complexos, num afã, num amor que entra, não raro, pelo sacrifício.

Cumpre lembrar que foi nesse espírito exemplarmente universitário, o de bem servir a Universidade e a ciência, que, além das muitas missões em que participou, dirigiu o Instituto de Língua e Literatura Portuguesas e o Instituto de Estudos Italianos da sua Faculdade, coordenou cientificamente o Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, dirige a Casa-Museu de Camilo Castelo Branco, em S. Miguel de Seide, onde coordena o Centro de Estudos Camilianos.

Liderou ainda os destinos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra ao longo de duas décadas.

Os estatutos filipinos exigiam que o Director da Biblioteca fosse bom latino, que, se possível, soubesse grego e hebraico e tivesse bons conhecimentos dos livros. Que era e é bom latino, demonstra-o a primorosa revisão que fez ainda recentemente da tradução da Legenda Áurea de Tiago de Voragine. De grego, pelo menos, tem alguns conhecimentos. Mas poucos o superam como bibliófilo e conhecedor do livro. Foi com toda a justiça, pois, que o Magnífico Reitor o nomeou Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cargo que exerceu desde 1984 como Adjunto do Doutor Luís de Albuquerque e, a partir de 1987, como titular, até 2004, quando solicitou a sua substituição.

Embora procurasse nunca antepor às suas preocupações com a Biblioteca Geral os seus deveres de Professor, prioritariamente empenhado na formação dos alunos e sobretudo na preparação dos seus discípulos, sacrificou-lhe muito de si e da sua carreira de investigador. Da sua acção, deve salientar-se o seu especial empenho em enriquecer o património intelectual da Universidade, além de dar continuidade a essa prestigiada série dos Acta Vniuersitatis Conimbrigensis, que tanto contribuiu para a formação científica e divulgação de várias gerações de estudiosos.

Apesar da carência de recursos materiais e humanos, nunca desanimou. E como a necessidade aguça o engenho, não se poupou a esforços na angariação de apoios financeiros junto de instituições públicas e privadas, concitando e movendo interesses para a aquisição de preciosos fundos bibliográficos e documentais de vários professores da nossa Universidade – como os de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, dos Doutores Rebelo Gonçalves, Mendes dos Remédios, Mário Brandão, Paiva Boléo, Herculano de Carvalho, Maria Augusta Barbosa – e de grandes vultos da cultura portuguesa – e. g. Eugénio de Castro e Oliveira Martins –, com os quais pretendia não só enriquecer o espólio da mais importante Biblioteca universitária do País, mas sobretudo disponibilizar aos seus colegas e discípulos da Academia de Coimbra e demais investigadores portugueses e estrangeiros, manuscritos e espécimes bibliográficos cujo acesso lhes estava até então vedado.

Homem de Letras, foi sempre um espírito entusiasticamente aberto à novidade. Ciente das potencialidades do universo cibernético para o mundo universitário cedo se converteu à informática, não descurando, também nessa vertente, a informatização do Catálogo Colectivo da Universidade, pois foi sobretudo sob a sua Direcção que começou efectivamente a ser implementado um Sistema Integrado de Informação Bibliográfica, sempre tendo como objectivo prioritário servir cabalmente os docentes, alunos e investigadores da Academia e permitir uma ligação eficaz com outras bibliotecas nacionais e estrangeiras. Paralelamente, promoveu a participação da Biblioteca na Base Nacional de Dados Bibliográficos (PORBASE). Através de financiamentos externos que ele, por iniciativa individual, soube procurar, adquiriu para a Biblioteca o sistema LIBERTAS, substituído em 2003 pelo actual sistema MILLENIUM. Em Junho de 1997, um ano e meio depois da inauguração do Catálogo Público em Linha, já este comportava uma base com cerca de 300.000 registos (cf. Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra 43 (1997) p. 324) e, em 2004, integrava cerca de meio milhão (mais concretamente 612.384), não obstante os magros recursos financeiros e a reduzida disponibilidade de meios humanos.

Enquanto professor, o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro foi um denodado defensor da exigência científica. O seu rigor e exigência decorrem da fidelidade intransigente a uma formação universitária que é parte integrante da sua própria personalidade e que, pela sua firme coerência, nunca renegou.

A sua preocupação com o devir da juventude não se confina aos estudantes da Academia. Homem de Coimbra, não precisou de despir o hábito talar para, nesse espírito genuíno de universitário, de total abnegação e entrega, realizar uma notável obra de alcance social fora da cátedra. Merecem-lhe um lugar particular no seu magnânimo coração os jovens e crianças de duas instituições que tutela com todo o esmero e às quais se entrega com zelosa e paciente dedicação, para lhes proporcionar um sentido mais auspicioso à sua existência, eles que, desamparados e indefesos, se encontram mais expostos às tristes vicissitudes e sortilégios desta vida terrena. Refiro-me, naturalmente, à Casa de Infância Doutor Elísio de Moura, de que é Director, e ao Colégio dos Órfãos, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, de que é Provedor.

Às crianças, aos idosos e aos indigentes, a todos eles o Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro não se cansa de prover, não só lembrado das obras de misericórdia que a Igreja católica a todos convida a pôr em prática – não fosse ele o Provedor da Santa Casa da Misericórdia! –, mas sobretudo em plena fidelidade à doutrina social da Igreja, instituição a que ele também já deu inúmeras provas de desejar servir incondicionalmente e dignificar com o melhor do seu saber e dos imensos talentos que Deus confiou à sua guarda.

As devoções da sua preferência espelham igualmente este dualismo de homem repartido entre a cidade de Coimbra e a Universidade. Num caso, é bem evidente o fervor da sua dedicação à Rainha Santa Isabel, de cuja Confraria é Presidente; no outro, a sua dádiva total a Nossa Senhora da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal e da nossa Universidade. Não admira, pois, que esta generosa entrega voluntária tivesse sido distinguida com a Comenda da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Viçosa, de que é ainda Chanceler.

É difícil, senão impossível, descrever a sua forte e multifacetada personalidade que se pauta por uma crença de sólidos fundamentos nos valores do humanismo cristão, por uma firme tenacidade de princípios. Homem de um só rosto e de uma só fé, nem sempre o seu temperamento foi compreendido por todos, mas é próprio de quem possui firmes convicções, porque, quanto ao resto, a ele se aplica a pergunta de Séneca, numa das suas cartas a Lucílio “Como pode, de facto, agradar ao vulgo alguém a quem só a virtude agrada?” (Quis, enim, placere populo potest cui placet uirtus? – Epistulae Morales ad Lucilium 29).

E posto que a sua voz tonitroante pareça fazer ressoar a “tuba canora e belicosa”, mais não é que o clamor paterno, que cedo dá lugar a um coração brando, afectuoso e acessível aos colegas, discípulos e amigos, como bem reconhecem os que com ele têm a felicidade e o privilégio de privar.

O retrato que Fr. Luís de Sousa traça do agora Beato D. Fr. Bartolomeu dos Mártires poderia ser aplicado ipsis verbis ao Senhor Doutor Aníbal Pinto de Castro, não tivesse ele sido um dos que contribuíram para a promoção da causa da sua beatificação ao publicar em Braga um excelente estudo sobre o Perfil espiritual de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires. Da perspectiva dos biógrafos ao processo de canonização. Mais do que o retrato físico, ainda que este apresente também muitas semelhanças com o do seu promotor, importa-nos o perfil psicológico. Passo a citar:

“Destas feições resultava uma certa majestade, que o fazia tão grave e venerável, que, de primeira vista, era, de quem o não conhecia, julgado por esquivo e intratável; mas conversado, não havia maior brandura: era chão, fácil, humano mais do que se pode crer, efeitos da filosofia cristã e verdadeira virtude, que tempera e adoça o agro da natureza, e melhora e aventaja o bom”.

As qualidades naturais de irradiante comunicabilidade, alimentada pela frescura de uma saudável boa disposição, sempre acompanhadas da sua infatigável e cativante ironia, cedo lhe granjearam a admiração e a estima de colegas e discípulos.

Homem sério e honesto, de carácter inabalável e de uma transparente frontalidade, nunca traiu os seus ideais, nunca desamparou os seus amigos, sobretudo nas horas mais difíceis.

Graças a estas qualidades, soube conquistar o mesmo respeito e admiração por parte dos mais distintos representantes dos diversos quadrantes políticos, sociais e académicos, os quais, ainda que perfilhassem ideologias opostas e outros modos de sentir, nunca deixaram de lhe regatear os mais subidos preitos e homenagens.

Esta sua multifacetada actividade mereceu, por isso, que o Conselho Superior da Universidade Católica Portuguesa deliberasse, por unanimidade, atribuir-lhe o grau de Doutor honoris causa pela mesma Universidade.

Por motivos idênticos foi agraciado, ao longo dos anos com múltiplas distinções de que, por sua natural modéstia, poucos o sabem possuidor, como o grau de Cavaleiro da Ordem Equestre do Santo Sepulcro e a Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago de Espada, além de outras já aqui referidas.

Por tudo quanto ficou dito, podemos assegurar firmemente que os Senhores Doutores Walter de Sousa Medeiros e Aníbal Pinto de Castro souberam transmitir bem vivo o facho da ciência aos seus sucessores: os Mestres que hão-de garantir a perenidade desta gloriosa Universidade. É a longa tradição dos nossos maiores que assim no-lo exige.

A todos ficou bem patente que os Doutorandos são verdadeiros Discípulos de tão distintos membros da nossa secular Instituição, pois souberam reunir em si não só o saber académico que deles herdaram e o engenho desenvolvido e orientado na longa convivência dos seus Mestres, mas também aquela maneira de ser e de estar na vida, consentânea com a elevação ética e moral, e as qualidades humanas imprescindíveis à formação integral do escolar da Vniuersitas.

Nestas circunstâncias, peço a V.a Ex.a, Magnífico Reitor-Cancelário, que ordene que lhes sejam impostas as insígnias doutorais, na firme convicção de que a Alma Mater Conimbrigensis, admitindo-os no seu insigne Colégio Doutoral, presta a eles a merecida honra e se ilustra a si mesma."

Sem comentários:

Enviar um comentário