Desde há algum tempo a esta parte, se perfilam no panorama literário português algumas publicações e anúncios de eventos, destinados às comemorações do 36º aniversário do 25 de Abril de 1974. Entre as publicações em causa, está um livro com uma entrevista de João Céu e Silva ao escritor António Lobo Antunes, onde a dado passo o entrevistado refere a sua experiência vivida na Ex-Província Ultramarina de Angola. As controversas narrativas do escritor sobre o modus operandi das Forças Militares Portuguesas, pretendem lançar literalmente no pântano a boa reputação de que estas sempre gozaram e que é seu apanágio. Creio ser legítimo, o direito (e dever) dos Militares Portugueses envolvidos nessas declarações, de se manifestarem com veemência contra tal afronta.
Também eu fui combatente em Angola, militar das Forças Armadas Portuguesas e apesar da pouca idade, pois ainda nem tinha 19 anos, me orgulho de ter combatido ao serviço da Pátria Portuguesa. Estive no centro da guerra, em locais como Nuambuangongo, Santa Eulália, Zala, Maria Fernanda, Quicabo, Quitexe, Região de Henrique de Carvalho, Santo António do Zaire, enclave de Cabinda e em tantos outros locais, onde a memória já me vai falhando − ou se recusando à lembrança −, na tentativa de os descrever a todos. Operei em conjunto com Rangers, Fuzileiros, Comandos, Pára-quedistas e demais tropas especiais e regulares que operavam nas regiões que descrevi. Colaborei e assisti a muitas “coisas”, umas boas outras menos boas. As nossas acções, enquanto intervenientes na guerra de guerrilha no Ultramar Português, não foram melhores nem piores do que em várias situações, outros militares de outras Nações, incluindo os nossos próprios “inimigos”, perpetraram contra as Forças que se lhes opunham. Colares enfeitados com orelhas do “inimigo” e cabeças dos “nossos” espetadas em paus, eram acções que de modo raro se observavam e como tal não indiciam um procedimento normal e enraizado entre as Forças Militares em campo. Tais atitudes anómalas existiram em ambos os lados, ocasionadas por comportamentos anormais de pessoas afectadas pelos acontecimentos vivenciais em ambos os lados. É completamente errado tomar uma pequena parte pelo todo, pois tal atitude apenas indicia uma manobra demagógica que pretende servir um determinado objectivo e não é de forma alguma inocente.
Foi o levantamento militar de 25 de Abril de 1974, uma lufada de ar fresco que criou nas populações a expectativa de que Portugal poderia vir a ser um país melhor do que era até então, nos aspectos político, económico e social. Passados 36 anos sobre essa data, é notório que nalguns pontos, até conseguimos estar pior – por exemplo segundo alguns analistas, o salário mínimo nacional, para ser equivalente aos valores praticados em Abril de 1974, deveria actualmente ser superior a quinhentos euros. Essa é a consciência que tem uma boa parte da população portuguesa, que por isso se sente enganada e se encontra desiludida e desmotivada, fruto dos devaneios praticados pelos partidos políticos e justificadamente descontente com a oligarquia partidária que então se instalou no poder durante este período.
A publicação que referi anteriormente parece pretender justificar aquilo a que é hábito chamar “descolonização” no período pós 25 de Abril, ou seja, a entrega das Ex-Províncias Ultramarinas Portuguesas a grupos de interesse político-económico internacionais, tendo o governo português se demitido das suas responsabilidades para com os Povos desses territórios, causando instabilidade e danos vários não só nesses novos países que despontavam mas também no território nacional, situação da qual ainda padecemos.
Posto isto, facilmente se depreende que pouco há a comemorar daquilo que nos trouxe a revolução do 25 de Abril, salvo algumas situações sociais que melhoraram, de facto. No entanto, existem inúmeros problemas de fundo que dificilmente serão resolvidos no actual quadro de regime político. Passo a referir alguns que entendo mais graves, sem no entanto fulanizar, embora sejam questões já tornadas públicas e portanto facilmente comprováveis.
•A questão dos governantes que após terminarem as suas funções no governo vão para a administração de instituições bancárias e empresas públicas e privadas em sectores que antes tutelavam, propiciam um natural ambiente de suspeição sobre eventuais casos de corrupção, alguns alegadamente acometidos, até por algumas decisões controversas por eles tomadas durante o cargo governativo. As situações são várias e deveras preocupantes.
•Os rendimentos anuais auferidos pelos detentores de cargos públicos, incluindo os deputados da Assembleia da República, não se encontram em consonância, nem de perto nem de longe, com os rendimentos das populações em geral. Acresce ainda as altas reformas que alguns políticos passam a ter direito, por escasso período de actividade ao serviço do Estado, em relação à situação comum das populações. Quanto às remunerações e prémios recebidos por administradores do sector público e também privado, chega a ser escandaloso. As mais altas remunerações auferidas por detentores de cargos públicos, é mais de cem vezes superior ao rendimento do trabalho de um trabalhador que ganhe mesmo acima do salário mínimo nacional. Há administradores que não sendo de topo, auferem rendimentos anuais superiores ao Presidente dos Estados Unidos da América, enquanto o salário mínimo em Portugal é dos mais baixos da Europa. Para além de rendimentos manifestamente avantajados, acrescem mais um sem número de mordomias que ofendem a generalidade dos portugueses. Aliás, recentemente surgiu uma polémica sobre um prémio que um administrador público irá receber num valor muito superior a um milhão de euros, o que lhe daria um rendimento anual bruto, relativo ao ano anterior, de cerca de três milhões de euros. Considerando tal prémio um exagero, entendo no entanto que só o rendimento sem o prémio já é uma afronta ao Povo português. Acresce ainda a velha questão dos Ex-Presidentes da República, que após terminarem o seu mandato, continuam a receber como rendimento anual e demais mordomias, um valor que está de todo desajustado ao país que somos.
•As anormais situações surgidas mesmo ao nível da Justiça e as alegadas pressões do executivo sobre vários órgãos da comunicação social – em que algumas, a julgar pela manifesta alteração editorial, terão sido efectivamente concretizadas –, entre outras igualmente gravosas, têm contribuído decisivamente para a descredibilização do aparelho de Estado. Aqui torna-se lícito reproduzir as máximas de um dos militares interventores no 25 de Abril: “… ao Estado a que isto chegou”; e “… não era nada disto que se pretendia”. Desde o infindável “Caso Casa Pia”, que envolve gradas figuras do sistema, até ao “Caso Face Oculta”, passando por outros tantos de igual calibre, deixam ruborizado qualquer mortal que tenha “um pingo de vergonha”. Mau grado provas e contra-provas, tudo continua na mesma, levando-nos a concluir que tudo não passa de manobras de diversão para manter ad eternus esta situação calamitosa que o governo e o Estado da Nação enferma. Em boa verdade, muitas vezes nem se consegue distinguir se as alegadas denúncias serão verdadeiras ou se apenas se trata de lutas intestinas de grupos partidistas rivais que disputam a primazia de continuar a controlar-nos e a sugar o erário público. Enfim, uma lástima. Em contra-corrente, (re)apareceu recentemente, por parte do partido político actualmente no poder, uma já velha e gasta acusação sobre o “negócio” da compra de submarinos, protagonizado por um elemento de outra facção político-partidária. Como no ponto anterior, não nos é possível ajuizar da veracidade de tal acusação, podendo apenas, à semelhança do caso anterior, considerar tal possibilidade. No entanto, o que é estranho – ou talvez não –, é o facto de esta acusação já por várias vezes ter surgido no passado, sem que tenha surgido uma solução definitiva. Esta recorrência, recorda-me aquele conto engraçado sobre um médico de aldeia, que indo de férias, deixou o filho, também ele médico, a cuidar do consultório. Quando o pai regressou, o filho não escondeu o seu contentamento por ter resolvido um caso clínico antigo, de um paciente que tinha constantes febres altas. Então, com a perspicácia de um clínico mais experimentado, ele descobriu que tal se devia a uma carraça alojada em sítio mais recôndito no corpo no pobre homem e a havia retirado. De imediato, retorna-lhe o pai com alguma rispidez: Pois! Extraíste a carraça, agora o homem já cá não volta e quero ver como te sustentas o resto do mês! A governação do país, não pode estar dependente dos interesses de grupo dos partidos políticos, nem estes podem por sua conveniência adiar resoluções que são obviamente do interesse nacional.•Uma outra questão que frequentemente se coloca e põe em causa a eficácia dos sucessivos governos da República, é o constante agravamento das condições de segurança pública. Por muito que queiram convencer os portugueses que a culpa é do excesso de banditismo, o que realmente falha é a falta de policiamento e de instrumentos legais que obstem à crescente onda de criminalidade. Dessa tarefa os governantes não se podem demitir, sendo essa uma das principais tarefas adstritas ao governo da Nação e que justifica a sua própria existência. A manipulação abusiva de dados estatísticos com o intuito de dar a impressão de que a situação está estável ou em regressão, tentando justificar o injustificável, não sossega as populações que sentem bem perto o problema.
Estas são algumas das questões que na minha perspectiva, ensombram as comemorações do golpe de Estado que derrubou o Estado Novo em Abril de 1974. Fazendo o ponto da situação, na actual sociedade portuguesa não se vislumbram grandes benefícios, quer na componente social, quer na componente política, e muito menos na económica, em relação à segunda República, para além de alguns benefícios sociais a que já aludi anteriormente e mesmo estes se revelam manifestamente insuficientes e desajustados ao espaço europeu no qual estamos inseridos.
Com o actual sistema político, apenas os partidos políticos beneficiaram, impondo-se aos portugueses num regime de rotativismo ou alternância na governação, na pretensão de se perpetuarem no poder. É por demais evidente que o jogo político está viciado e esta é uma situação da qual os portugueses não colhem qualquer benefício. Creio que o maior erro do movimento de Abril de 1974, mau grado a justa expectativa que criou nas populações, foi não ter conseguido alterar o tipo de regime político, terminando com a República que nos tem dado má prova e instaurando a Monarquia. A instrumentalização das massas levou à efectivação de um regime de excepção, oligárquico, em que apenas os partidistas logram.
Luiz Andrino
(Fonte: Luiz Andrino blog)
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