segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A VERSÃO HISTÓRICA DOS VENCIDOS

O livro do jornalista monárquico Joaquim Leitão relata a descoordenação militar, denuncia a fuga de ministros e até revela que o futebol serviu de senha aos revolucionários

Do depoimento de todas as testemunhas dos factos de Outubro é que tem de sair a confirmação da verdade, seja ela triste, seja ela consoladora." O jornalista Joaquim Leitão fez a reconstituição do golpe através da versão dos monárquicos que foi entrevistando, compilando no livro Diário dos Vencidos (publicado em 1911 e agora reeditado pela Alêtheia) os artigos que escrevera no jornal Correio da Manhã logo após a implantação da República.

Além de revelar os problemas militares, com o capitão Martins de Lima a sustentar que o plano secreto de defesa do coronel José Joaquim de Castro (que, neste livro, defende a sua estratégia, num curioso confronto de versões) "foi mais prejudicial à Monarquia que todo o clorato de potássio e dinamite dos carbonários, foi uma bomba única, fenomenal, que derrubou um regime e cujo estampido repercutirá para sempre na História de Portugal", esta obra também denuncia as traições, "coincidências que lembram cumplicidades, fraquezas que parecem vendas, desorientações que passam por cobardias".

No quartel-general, o ministro da Guerra, Raposo Botelho, "estava vestido à paisana, sentado à mesa, reconfortando-se com um caldo reparador". O seu colega Marnoco e Sousa, "o intemerato ministro da Marinha que o [primeiro-ministro] sr. Teixeira de Sousa foi pescar ao Mondego" (era professor de Direito em Coimbra), após entrar pela primeira vez na vida no Arsenal, saiu de lá, foi bater à porta de uma pensão e alugou um quarto. "O proprietário, carbonário, reconhecendo o ministro, deixou-o entrar e fechou-o à chave por fora."

Mas nada se compara "às atribulações do sr. Pereira dos Santos, último ministro das Obras Públicas da Monarquia, [que,] fugindo com o terror da chacina, pelos bairros excêntricos de Lisboa, são de encomenda para alegrar um chorão". O governante andou a mendigar um abrigo para se esconder ("prefiro morrer à fome do que fuzilado") e, quando, dias depois, chegou à sua casa no Estoril, passou várias vezes diante da porta com medo que estivesse ocupada pelos revoltosos, que, decerto, o executariam.

Perante isto, de pouco vale a explicação do capitão de infantaria que tinha fugido, ao ser interpelado por um oficial do Estado Maior: "Caiu ao pé de mim uma granada que me atirou um torrão com toda a força e que me magoou imenso. Está claro que me vim embora."

Panorama dos acontecimentos obtida junto dos que se esforçaram por defender o regime monárquico ou assistiram a tudo junto de D. Manuel II, o livro mostra imensos absurdos. O Campo Entrincheirado, por exemplo, "não podia intervir de maneira nenhuma", explicava anonimamente "um oficial de artilharia, muito conhecido pelo nome político da família, e antigo deputado, que pertencia à guarnição dum dos fortes" daquele complexo. "Eu explico. O Campo Entrincheirado compreende as baterias Rainha Amélia, Rainha Maria Pia e Duque de Bragança, na margem norte; e a bateria da Raposeira, na margem Sul; São Gonçalo, ao pé da Duque de Bragança. As da margem norte batem até Entre-Torres e fora da barra, sendo nestas que estão os obuses de 28. A Raposeira bate por cima da Trafaria. Ora, as baterias estão assentes para defender Lisboa de ataques de fora, e não de ataques de dentro. E como o campo de tiro, nestas peças de tiro indirecto, não abrange o quadro dos navios de guerra, o Campo Entrincheirado não podia bater cá para dentro. Para o Campo Entrincheirado incomodar os navios [republicanos] era preciso que eles saíssem a barra. Mas há mais coisas curiosas. Caxias tem obuses de 28 e tem lá um farol. Pois, como o farol podia cair, nunca se experimentou os obuses."

Razão tinha Martins de Lima quando propôs que se prendesse o Governo, esses "intrusos" que punham o quartel-general "numa confusão de endoidecer". "E hoje estou arrependido de não insistir até o general prender os ministros. Afinal, quem fez a República foram eles."

O livro está repleto de preciosidades históricas. "Este é do pontapé na bola", dito pelos marinheiros revolucionários, pois "muitas praças do cruzador Adamastor jogavam bem o foot-ball", queria dizer "este é do movimento".

E Joaquim Leitão aproveita para lançar uma crítica fora do contexto. "Com a mania que há entre os filólogos - que são os homens mais maníacos que se podiam inventar - de traduzir o intraduzível, os desportistas entenderam que deviam traduzir o foot-ball por 'pontapé na bola'."

Jornalista cuidadoso, para não ser acusado de criar boatos, confirma os depoimentos e, quando não atribui a autoria, esclarece logo os leitores. "Quem é este nosso entrevistado?... Pouco importa sabê-lo. Basta que a garantir a autenticidade possamos dizer, como podemos, que Paiva Couceiro, a quem lemos a entrevista antes de a publicarmos, a confirmou em todos os pormenores."

Joaquim Leitão só não podia suspeitar que um dos três tenentes do quartel dos marinheiros de Alcântara, que não aderiram à revolução e foram presos, seria um vulto notável nas décadas seguintes. Chamava-se António Sérgio.

(Fonte: DN)

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