Tenho com a História uma relação intensa. Que não chegou para, na hora académica de decidir, a abraçar como opção de vida. Os tempos em que cursei na Universidade do Porto, não sugeriam cursos de fôlego tão curto e ambição tão incerta.
Mas cedo percebi que a História que sempre precisou do tempo, precisava ainda de tempo, para fazer um caminho de rigor e de isenção que está na base da sua própria essência. Uma história que não seja credível não é legítima e, por isso, merece aplauso a evolução registada, desde então, nos instrumentos de pesquisa e nos métodos de análise que acabaram por dar à História o rigor e a integridade que a fundamentam.
O pecado original da História é que é feita de protagonistas e, por isso, também de uma determinada forma de ver e de contar. Que sendo a primeira e tantas vezes feita na primeira pessoa, é mais fácil de ser manipulada e amplificada.
Só o tempo e uma nova “exegética” impostas pela técnica e pelo método permitem que a História se recoloque no seu “âmago” principal que é a Verdade. Mas mesmo assim este trabalho de conciliação com a Verdade é um trabalho condicionado pelo tempo e, normalmente, confinado ao espaço académico e interpretativo, o único onde vale a pena validar e guardar as coisas do tempo.
Para nós que absorvemos apenas as representações mais frívolas da História, ficam muitas vezes apenas a memória dos seus protagonistas e a incerteza das suas manipulações.
Pediram-me para Vos falar da Revolução de 31 de Janeiro. Não de um 31 de Janeiro qualquer. Mas daquele que em breve ocorrerá, em pleno centenário da República.
Conhecia já o “embuste histórico” e por isso não precisei de tempo de pesquisa apreciável para rememoriar os factos dessa altura. Socorri-me do insuspeito historiador Rui Ramos na notável biografia que faz do Rei Dom Carlos I.
A verdade mais crua é que a revolução de 31 Janeiro de 1891 se limitou, pelo lado civil, a uma luta interna despoletada no seio do partido republicano e, pelo lado militar, à reacção a uma lei publicada a 17 de Janeiro que dificultava aos sargentos a promoção a oficiais.
O “Ultimato” e o “ódio ao inglês” foram, consabidamente, o pretexto jacobino e patriótico para uma acção que ocorre, como reconheceram os próprios republicanos, num tempo em que se vivia no País uma “completa tranquilidade” e numa cidade onde os republicanos tinham tão pouca expressão que, poucos anos antes, tinham registado o marginal resultado de 600 votos!!
O facto é que o Congresso Republicano realizado a 5 do mesmo mês de Janeiro tinha apeado do poder o “evolucionista” José Elias Garcia e colocado na liderança do partido os “revolucionários” Manuel de Arriaga e Homem Cristo. José Elias, como sublinha Rui Ramos, resolveu “apanhar os revolucionários no seu próprio jogo, animando uma conspiração chefiada por um maçon, Manuel Alves da Veiga e por um jornalista de escândalos, Henrique Santos Cardoso”.
Na madrugada de sábado, 31 de Janeiro, cerca de metade da guarnição militar do Porto sai para a Rua, sem conseguir encontrar quem os chefiasse, porque até o general reformado Correia da Silva, apalavrado para a chefia da rebelião, acabou por não comparecer.
Às 7h00 da manhã a desorganizada rebelião proclamava a República na Câmara Municipal do Porto e às 11h00 da mesma manhã …. todos tinham fugido ou estavam presos!!!
Foi esta a verdade crua de uma “epopeia” que perdurou enganosamente no tempo e que ainda hoje se usa para enaltecer não sabemos muito bem o quê?
A falta de relevância desta caótica rebelião, de motivações equívocas, está demonstrada na própria forma como foram sancionados os prevaricadores, a maioria incautos soldados que foram julgados a bordo de 3 barcos de guerra, no meio dos vómitos dos juízes, que declararam sentenças “preparadas como simples pretexto para futuros perdões e amnistias”.
A revolução de 31 de Janeiro foi, no corpo e no espírito, tão atabalhoadamente caricata que um dos civis que participou e ajudou na “conjura”, o conhecido jornalista João Chagas, acabaria por confessar publicamente que o golpe”não foi um erro político, mas um erro de gramática”.
Quem não gostou que apesar da irrelevância do episódio o Pais “branqueasse” uma vez mais as diatribes republicanas e a sua vocação manipuladora, foi Eça de Queiroz que, de Paris, logo vaticinou que “o Governo há-de apenas tomar umas meias-medidas, inspiradas por uma meia- -coragem e executadas com uma meia-prontidão”.
Assim foi de facto a Revolução e não aquela que é comemorada por meia dúzia de maduros, provavelmente convictos de que celebram alguma coisa importante ou libertadora. Não foi o caso desta Revolução cujos factos não aproveitaram ao País, e cuja memória ajudou a que se continuasse a “viciar” a História.
Alguns dos civis ditos inspiradores da revolta, mas que deveriam ser mais propriamente conotados como conspiradores dentro do seu próprio partido e contra o seu próprio Directório, dão hoje nome às Ruas da cidade do Porto.
Talvez porque mais tarde participaram na Revolução lisboeta de 5 de Outubro que se alicerça no ignominioso assassinato do Rei Dom Carlos perpetrado, também em Lisboa, a 1 de Fevereiro de 1908 e cujas verdadeiras motivações e equívocos, a história tratará ainda de aclarar.
Mas nunca foi o Porto o inspirador ou o ponto de partida da revolta republicana e, muito menos, dos actos desses seus (?) concidadãos, exemplares decaídos de uma partidocracia em acelerada degenerescência, responsável pela profunda crise económica e social que levaria ao fim da monarquia, mas que só pararia, muitas dezenas de desordens e de governos (republicanos) depois, com a prolongada ditadura (também republicana) de António Oliveira Salazar.
Para a parte frívola da História ficou a toponímia das ruas da cidade a celebrar injustamente gente pequena, enganosamente glorificada pela insondável e misteriosa “ética republicana”.
Eu, que tive o meu primeiro escritório na denominada R. 31 de Janeiro, insistia em que me visitassem na R. de Santo António, a designação anterior desta bonita e íngreme Rua da Baixa do Porto, evocativa da memória de Fernando de Bolhões, Santo da Igreja que antes de ser de Lisboa ou de Pádua, é uma das figuras maiores de Portugal e dos Portugueses que o Porto tão justamente homenageava.
O que o Porto pode e deve comemorar, isso sim, é a revolução que contra o estado de miséria social e moral do País ocorreu, a partir da cidade invicta, em 1919 e que ficou conhecida por “Monarquia do Norte”.
O Porto e o Norte inteiros restauraram, nove anos depois, a Monarquia em Portugal e só porque Lisboa, dominada “in extremis” pela maçonaria internacional, faltou ao compromisso seguro da acolher e propagar a Revolta é que hoje vivemos em República.
Mesmo assim, durante 7 dias desse ano de 1919, a Monarquia prevaleceu como regime nas instituições do Porto e do Norte de Portugal, que deveria estar dispensado de comemorar, até pela questão matemática do decurso ininterrupto do tempo, o tal centenário da república.
Julgo que este é um tempo em que o Porto e os portuenses se deviam confrontar com a sua História – valorizando aquilo que foram e são os seus ícones mais representativos e as marcas que melhor desenham o carácter profundo e íntegro da cidade e dos nela viveram e vivem.
Foi a verdadeira capital do Reino onde, no princípio, tudo aconteceu.
De onde o Império e a Nação se cumpriram.
Primeiro no território europeu e continental, sob a liderança arrebatadora de Afonso Henriques ou, mais tarde, na tranquila determinação de S. Nuno de Santa Maria.
Logo depois, veio a diáspora que o Infante Dom Henrique começou a preparar a partir do Porto e sempre ancorado no labor e na generosidade dos portuenses. Mais tarde, as Invasões Francesas e o Cerco do Porto, dão o vivo testemunho da mesma cidade intemerata, da mesma laboriosa verticalidade dos portuenses.
O Porto que não tem que comemorar a República deve, porém, reflectir sobre ela.
Do que nos trouxe de bom. Do que nos serviu e ainda serve?
Desde a primeira com 40 Governos em 16 anos e perseguições sociais e religiosas ironicamente feitas, como naquele “para além do muro”, em nome da liberdade. Passando pela segunda República que para restaurar a ordem e nos proteger da guerra, nos pôs mutilados do Mundo e, agora sim, órfãos da Liberdade. Até à terceira República que, depois de quase ter resvalado para o precipício comunista, se deixa hoje ensombrar na mesma degenerescência partidocrática, onde a ética e a responsabilidade se escapam às classes dirigentes, onde a politica perdeu o fundamento das ideias e o sentido último do serviço.
O Porto que não tem que comemorar a República deve pensar, se neste contexto complexo de integração e globalização, não faltarão a Portugal elementos firmes de agregação e identidade nacional, portadores de um relacionamento e notoriedade que sejam, simultaneamente, garantes da melhor representação internacional.
Se não faltarão a Portugal verdadeiros árbitros do funcionamento das instituições, realmente distantes do sistema partidário que devem respeitar e regular.
Se não faltarão a Portugal exemplos maiores de serviço, responsabilidade e de entrega à coisa Pública.
Eu que sou daltónico e futebolisticamente incorrecto deixo o desejo, em tempo de Ano Bom, que a reflexão sobre o 31 de Janeiro e o centenário da República permitam que o Porto e os Portuenses voltem a sentir que vale a pena, marcarem encontro com a História e ajudarem a vestir Portugal de azul e branco.
António de Souza-Cardoso
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