sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

MÁRIO SOARES - MONARQUIA E REPÚBLICA


Assim, Monarquia e República são hoje regimes que pouco se diferenciam, quer no piano nacional quer internacional. Aproximou-as a democracia que ambos os regimes se orgulham de praticar. Quanto a isso, não e possível voltar atrás, espero…

Os Estados organizam-se de diferentes formas, desde a mais remota antiguidade: impérios; monarquias, absolutas e constitucionais; repúblicas, oligárquicas e democráticas, de acordo com o modo como são organizados – e, depois, eleitos -os seus órgãos do poder; as ditaduras, militares e civis, que podem ser autoritárias e totalitárias, conforme o controlo do poder sobre os indivíduos e menos ou mais absoluto.

O século xix, na sequência da Independência Ameri­cana e da Revolução Francesa, ambas no fim do século xvm, foi um tempo de liberalismo politico (não confundir com o liberalismo económico, cujo sentido é diferente). O século xx, bem mais violento e perturbado do que o anterior, foi o Século das Ditaduras, militares e civis, autoritárias e totalitárias, como Hannah Arendt definiu os regimes fascista, nazi e comunista. Foi ainda o tempo das grandes guerras, das guerras civis, das guerras e dos conflitos regionais e das revoluções. Finalmente, no final do século xx (1988-91) deu-se a implosão do comunismo soviético e o triunfo – parcial da democracia.

As ditaduras comunistas implodiram, sem efusão de sangue, ao contrario das ditaduras nazi-fascistas, que foram destruídas pelo exterior e em função da guerra que desencadearam. De facto, em virtude da derrota, sem condições, da Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, e do colapso da Itália de Mussolini que a antecedeu, os Aliados, a Inglaterra, a América, a França Livre e a Rússia ganharam a guerra e estabeleceram a paz, em nome da democracia. For pouco tempo. Veio, pouco tempo depois, a divisão do Mundo em dois blocos ideológicos rivais, a seguir a Guerra Fria e as independências dos países libertos do colonialismo.

Dilucidemos todos estes conceitos e eventos, que são com efeito muito variáveis e complexas, para os tornar, tanto quanto possível, transparentes.

Na antiguidade, tivemos impérios, grandes impérios, em que toda a construção do Estado girava em torno da pessoa do imperador: o poder militar, religiosa e politico, por ordem de importância. O imperador concentrava na sua pessoa, divinizada, como se fosse um Deus, todo o poder que exercia, através de um conjunto de colaboradores-funcionários que Ihe obedeciam cegamente. Foi o que aconteceu com os antigos impérios chinês, persa, egípcio, japonês e outros, como o Império Romano. A Primeira Guerra Mundial pos fim, como disse, a quatro impérios: o russo, o alemão, o austro-hungaro e o turco ou otomano.

As monarquias europeias foram, inicialmente, de caracter absolute, nacional e de direito divino indiscutíveis, como no tempo de Luis XIV de Franca, o «Rei Sol», exemplo máximo de rei absolute – L’Etat c’est moi – mas que, apesar disso, esteve longe de ser um imperador déspota ao estilo oriental. Os seus antecessores e sucessores tiveram primeiros-ministros e ministros que detinham de facto os principais poderes do Estado, ao serviço do rei. Foi o período do chamado despotismo iluminado, com figuras como Richelieu e Mazarin, em Franc.a, Caspar de Guzman, duque de Olivares, no tempo de Filipe IV de Espanha, ou o Marques de Pombal, em Portugal, no reinado do rei D. Jose, no século xvm. Eles mandavam em nome do rei, que concen­trava na sua figura todo o poder simbólico, exercido de facto pelos seus validos. Curiosamente, Salazar, um ditador civil do século xx, quando Ihe perguntaram como gostaria mais de exercer o poder, respondeu (cito de cor): «como o primeiro-ministro de um monarca absoluto», isto e, um déspota esclarecido…

Como disse, no capitulo anterior, o parlamentarismo nasceu no século xvn – ou mesmo antes – em Inglaterra. Surgiu para regular as disputas entre os senhores feudais e o rei e, depois, com o fortalecimento da Câmara dos Comuns (House of Commons), dos representantes da burguesia, que sucessivamente foi ganhando poderes para escolher o primeiro-ministro – e o governo – e para os derrubar se per-dessem a sua confiança. Dai que o parlamentarismo inglês tivesse sido sempre, ate hoje, bicamaral com a Câmara dos Lordes e a dos Comuns, também designadas por Câmara Alta e Câmara Baixa. Com o evoluir dos anos, a Câmara dos Comuns tornou-se o centre do poder politico inglês. Porque, segundo a máxima ainda hoje em use: «o rei [ou a rainha, como e hoje] reina mas não governa».

Na América, com a independência, a Constituição optou por um Estado republicano e deu ao Presidente – eleito directamente pelo povo – o poder executivo. Por isso, a América não é uma democracia parlamentar, mas antes uma Republica presidencialista. Apesar de o poder do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) ser hoje bastante grande.

O parlamentarismo difundiu-se por toda a Europa, sob a influencia da Revolução Francesa e do expansionismo napoleónico, durante o seculo xix, que vindo a ser um império, completamente autocrático, difundiu por toda a Europa, incluindo Portugal, as ideias da Revoluçãoo Francesa. Curiosamente, depois de Waterloo (derrota de Napoleão), o movimento constitucionalista (dito liberal) e o parlamentarismo progrediram a par. As teorias de que a soberania reside no Povo – ou na Nação – e não no rei, do «contrato social» de Rousseau e da separação dos poderes do Estado expressa por Montesquieu – legislativo, executivo e judicial – impregnaram o movimento constitucionalista, procurando dotar cada Estado nacional de uma Constituição escrita, onde os poderes do Estado fossem bem definidos e partilhados, para dar espaço aos direitos individuais dos cidadãos, retirando sucessivamente os poderes ao rei, que passou a ser um mero símbolo, representando, de algum modo, a unidade da Nação, mas com poderes cada vez mais reduzidos.

A Constituição americana de 1787 proclamou a Republica, entregando os poderes, respectivamente: o legislativo) ao Congresso (composto por duas Câmaras, a dos Representantes e o Senado), dado a Constituição americana ter definido a América como um estado bicamaral e federal – o Senado, cujos senadores, em numero igual por cada estado, isto e, dois; e os deputados eleitos representando dois parti-dos (sistema bipartidario), Republicanos e Democratas, que perdura ate hoje, segundo a dimensão da população de cada estado; o poder executivo pertence ao Presidente da República, eleito directamente pelo povo americano, que detém todo o poder executivo, exercendo-o através dos seus secre­taries que, em conjunto, constituem o Governo; finalmente o poder judicial e totalmente independente e ter um poder enorme, nos termos da Constituição. E o que se chama um regime republicano, federal e presidencialista – modelo que se mantém ate hoje e que inspirou quase todas as Repúblicas latino-americanas.

As Constitutivos portuguesas foram, historicamente, muito diferentes umas das outras: a primeira, de 1822, tendo como fonte a Constituição de Cádis de 1812, e uma Constituição liberal típica, obrigando o rei, que era D. João VI, e estava no Brasil, a regressar ao reino e a jurar a Constituição. O que ele fez, embora perdesse muito do seu poder, teoricamente, visto que era ate então absoluto e deixou de o ser. Veio, depois da sua morte, a Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro IV (então D. Pedro I, imperador do Brasil e seu sucessor, como filho primogénito), em 1836, portanto, sem depender de nenhuma Assembleia Constituinte e em que os poderes reais eram limitados, mas alguns ainda importantes.

A Carta Constitucional provocou uma divisão na família liberal entre vintistas (partidários da Constituição de 1822) e cartistas (mais moderadores e partidários da Carta). Essa divisão foi abafada pelo interregno absolutista de D. Miguel (1828-1834), visto que a guerra civil passou a ser entre migue-listas (absolutistas) e liberais (vintistas e cartistas). A chamada Revolução de Setembro de 1836 repos a Constituição de 1822, ate que a Assembleia Constituinte fizesse uma nova Constituição em 1838 (mais próxima da Carta Constitucio­nal), visto que conferia ao rei o chamado poder moderador (segundo a teoria de Benjamin Constant). Mas só durou ate 1842, voltando a vigorar a Carta Constitucional, que alias foi muito duradoura, dadas as emendas que sofreu em três actos adicionais a Carta, de 1852,1885 e 1896. Durou, assim, ate a proclamação da Republica, em 5 de Outubro de 191O. A Republica organizou eleições constituintes e elaborou uma nova Constituição: a de 1911. Uma Constituição progressista, para o tempo, totalmente parlamentarista e bicamaral. O Presidente da Republica passa a ser eleito pelas duas Câmaras (deputados e Senado), reunidas em conjunto (Congresso) e, uma vez que era eleito por ambas, fica dependente do Parlamento, com poderes meramente representativos e simbólicos. O executivo – o governo – era também exclusivamente dependente do voto do Parlamento, onde residia de facto o centre do poder politico.

Com a Revolução de 28 de Maio de 1826, que derrubou a I Republica (1910-26), foi suspensa a Constituição e passou-se a governar em ditadura, chamada militar, na primeira fase, e national, na segunda. Foi o regime do arbítrio, escolhido o Presidente da Republica pelos militares, que governavam e detinham todos os poderes do Estado.

Quando Salazar, ditador das Finanças, desde 1928, foi designado primeiro-ministro pelo general Óscar Carmona, tentou mascarar o regime ditatorial. Para tanto, mandou fazer a Constituição de 1933, que foi aprovada por um ple­biscite singular, em que as abstenc.6es contavam como votos a favor. Essa pseudo-Constituição durou ate a Revoluc.ao dos Cravos de 25 de Abril de 1974. Em Abril de 1975 – exacta-mente um ano apos a Revoluc.ao – foram realizadas as pri-meiras elei<joes livres, apos 48 anos de ditadura. A camara eleita, com poderes constituintes, elaborou, legitimamente, uma nova Constituic.ao, em 2 de Abril de 1976, que iniciou a II Repiiblica. E uma Constituic.ao pluralista e pluripartida-ria, avangada no piano social, que garante aos Portugueses o exercicio dos direitos humanos e, aos trabalhadores, impor-tantes direitos sociais, de tipo semipresidencialista e laica. E uma Constituigao que teveja emendas (revisoes constitu-cionais, alias previstas no texto constitucional) e que vigora ate hoje, a meu ver, muito satisfatoriamente.
Semipresidencialista e laica, porque? Porque o Presidente e eleito directamente pelo povo, mas o primeiro–ministro, indicado pelo partido com maior representa§ao no Parlamento (unicamaral, isto e, a Assembleia da Republica), depende, para se manter no poder, do voto maioritário par-lamentar. No entanto, a maioria pode ser dissolvida, excepcionalmente, pelo Presidente da Republica – e o governo cair – se o Presidente entender que «esta em causa o regular funcionamento das instituições democráticas», seguindo–se a dissolução da Assembleia da Republica e a marcação de novas eleições. Como disse uma vez, «o Presidente ter a bomba atómica mas não dispõe das armas convencionais». Ter, contudo, o chamado «poder moderador», a que tenho também chamado, desde que exerci essas funções, «a Magistratura de Influencia».

Laico? Porque a separação do Estado e das Igrejas, insita na Constituição, e clara – apesar da Concordata, revista -, porque assegura a liberdade de todas as religiões, nas condições de igualdade possível, respeita e não discrimina as minorias religiosas, assegurando a todas uma total liberdade religiosa, na base da lei do mesmo nome.

Com meio século de distancia, a I e a II Repúblicas estão numa certa linha de continuidade histórica, apesar de diferenças profundas e de um muito distinto contexto internacional. No principio do século XX, o republicanismo tornou-se, em Portugal, uma corrente avassaladora, que viria a destruir a monarquia, que – diga-se – apesar do assim chamado «dita-dor» João Franco, em parte responsável pelo regicídio, era uma Monarquia Constitucional. O fosso politico-ideológico entre republicanos e monárquicos era profundo. Hoje, não e assim. Reconheço-o como republicano confesso, filho de uma família profundamente republicana. Porque as monarquias existentes na Europa, hoje, são todas tão, ou mais, democráticas do que algumas republicas. São monarquias constitucionais em que o rei só tem poderes simbólicos e as aristocracias desapareceram ou estão em vias disso, em função da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Apesar disso, por convicção e por experiência, sou republicano e não vejo que haja condições para que Portu­gal deixe de ser uma Republica, e gostaria que aprofundasse a sua jovem democracia e que reforçasse nela a sua componente social e ambiental.

Mas isso e outra historia.

Assim, Monarquia e Republica são hoje regimes que pouco se diferenciam, quer no piano nacional quer internacional. Aproximou-as a democracia que ambos os regimes se orgulham de praticar. Quanto a isso, não é possível voltar atrás, espero…

Fonte : Livro Mário Soares – Elogio da Política, Sextante Editora
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