quinta-feira, 29 de julho de 2010

ASSEMBLEIA NACIONAL - CRISE MONÁRQUICA DE 1951, SALAZAR/CAETANO

Em Maio de 1951, segundo Caetano, crescia na Assembléia Nacional um ciúme estúpido em relação à Câmara Corporativa; e nesta generalizava-se o sentido de inutilidade, com muitos procuradores a querem sair. Pelo que lhe era permitido observar e ouvir, aproximava-se uma crise do regime, que poderia ser mortal.2 Era mais uma das diversas crises mortais do regime que diagnosticou a Salazar. Caetano abandonou entretanto o seu cargo na administração do Banco Nacional Ultramarino e foi nomeado comissário do Governo junto do Banco de Angola, com a prévia interferência de Salazar.3 Um gesto solidário.

Craveiro Lopes tomou posse em 9 de Agosto de 1951 e pouco depois soube-se que o «partido monárquico» armava uma cilada. No Congresso da União Nacional, marcado para 22 de Novembro, em Coimbra, vários oradores defenderiam a restauração da Monarquia e haveria uma manifestação com a presença de D. Duarte de Bragança. Caetano e Albino dos Reis procuraram Salazar e combinaram com ele a estratégia de contra-ataque: o próprio Salazar desautorizaria os monárquicos, no discurso de abertura, e depois Caetano tornaria inequívoca a doutrina da UN sobre o problema do regime. A rainha D. Amélia morreu em 25 de Outubro, no Castelo de Bel-levue, em Versalhes, e Salazar decretou em 6 de Novembro funerais nacionais. Depois, em Coimbra, coerente com a conduta de não hostilizar os monárquicos, Salazar vagueou por noções gerais, reconhecendo a superioridade real da Monarquia de conter em si própria a questão da estabilidade da che-fatura do Estado. Mas a Monarquia, não sendo um regime mas apenas uma instituição, podia coexistir com os regimes mais diversos, não constituindo por si só garantia de estabilidade de um regime determinado, senão quando se apresentava como «uma solução tão natural e apta» que não precisa de ser discutida na «consciência geral».4 Esta linguagem elíptica não foi entendida por todos.

Caetano fez as despesas do Congresso com um discurso marcante da sua vida pública, o «Discurso de Coimbra», que lhe valeu a duradoura ira do «partido monárquico». Antes, porém, o monárquico Soares da Fonseca, Ministro das Corporações e Previdência Social, queria impedi-lo de falar, o que provocou entre ambos um «atrito sério».5 A forma republicana do Estado Novo, com a eleição do chefe do Estado por sufrágio universal, lembrou Caetano, era tida por alguns como uma fraqueza das instituições. Meditara muito nisso, a partir do monarquismo da sua juventude e da tradição nacional, mas afastava-se agora da solução monárquica com base na «razão» e num «certo instinto político».6 E passou a explicar-se com exemplos. A Inglaterra tinha a realeza, mas na verdade era uma república, onde quem governava era o Primeiro-Ministro, a partir de uma maioria na Câmara dos Comuns, e não o rei. Na Espanha, como se viu, não era Afonso XIII que sustentava Primo de Rivera, mas Primo de Rivera que sustentava Afonso XIII. Na Itália, como se percebeu, não era Vítor Manuel que agüentava Mussolini, era Mussolini que agüentava Vítor Manuel. E em Portugal, depois de 80 anos de «república coroada» (o constitucionalismo), a tradição monárquica tinha sido de tal maneira quebrada que só era «sentida e compreendida por uma minoria».1 Os congressistas da «minoria», claro, não aplaudiram.

Além desta caracterização da precariedade da monarquia, o «Discurso de Coimbra» foi uma peça surpreendente e de leituras múltiplas, onde Caetano se exprimiu com uma frontalidade invulgar no Estado Novo. Fez uma evocação da história do regime, do trajecto de Salazar e da sua obra, e projectou o que sucederia se ele abandonasse o poder: «Por muito que ela nos desagrade, a hipótese é inevitável: Salazar não é imortal... A continuação do Estado Novo para além de Salazar não constitui problema justamente porque existe a sua doutrina e a sua obra.»2 A par do desejo de tranqüilizar os partidários do regime sobre a sucessão, Caetano explicou que se batera, desde 1947, pela eleição de Salazar para a Presidência da República. A Constituição de 1933 criara um sábio sistema de governo, a que ele chamava «presidencialismo bicéfalo», que permitia que a obra do chefe do Estado fosse continuada pelo seu chefe do Governo e vice-versa, isto é, que o chefe do Estado assegurasse a continuidade da política escolhendo um novo chefe do Governo. Ora a eleição de Salazar para chefe de Estado, prosseguiu Caetano, permitiria que ele mesmo garantisse a sua substituição, e assim habituasse o País a ver na Presidência do Conselho «um homem comum, ainda que experiente, sabedor e devotado ao bem público».3 Quanto ao mais, Caetano lembrou o perigo do Partido Comunista e o milhão de mortos na Guerra Civil de Espanha, elogiou Craveiro Lopes, citou Antônio Sardinha, seu herói de juventude, disse que o Estado Novo mantinha o equilíbrio entre a autoridade e a liberdade individual e que, se aqueles que pretendiam derrubá-lo tomassem o poder, «não nos deixariam por muito tempo em paz... por mero delito de opinião».4 A linguagem de Caetano era inesperada, o estilo directo, e o súbito protagonismo interpretável como uma promoção consentida. Quem seria o «homem comum» que Salazar escolheria se decidisse candidatar-se à Presidência da República?

Sem surpresa, a campanha monárquica contra Caetano atingiu uma ferocidade que só a intervenção da Censura conteve. O jornal da Causa Monárquica, O Debate, multiplicou os ataques, e publicaram-se dois livros contra o orador de Coimbra. Salazar não leu previamente o texto do discurso, Caetano indicou-lhe apenas os tópicos principais, mas perante os clamores contra o seu subordinado que se atirou à cabeça do touro sentiu necessidade de protegê-lo com uma carta afectuosa: tinha gostado muito.5 Entretanto, durante uma cerimônia no Porto, Craveiro Lopes irritou os monárquicos ao lembrar que tomara posse jurando fidelidade à Constituição da República e que nunca se afastaria desse compromisso.6 Em 16 de Abril de 1952, perante a grande agitação monárquica, Caetano punha três hipóteses: a restauração, um novo Monsanto (alusão à tentativa restauracionista de 1919) ou o afastamento do Estado Novo das pessoas e grupos que alimentavam a causa monárquica, o que redundaria numa indesejável viragem à esquerda.1 Em Junho de 1952, aceitou bem o convite de Salazar para vogai da Comissão Central da União Nacional, reiterando a disposição de servi-lo.2 Em Julho, como um óbvio desagravo da campanha monárquica, foi nomeado membro vitalício do Conselho de Estado, de que já era membro inerente como presidente da Câmara Corporativa. O convite coube formalmente a Craveiro Lopes; mas foi Salazar quem naturalmente decidiu.3 Ascendia à cúpula das cúpulas. Mas continuava sem poder. Tornara-se também, dentro do regime, o inimigo número um dos monárquicos.

Enquanto isto, através do I Plano de Fomento (1953-1958), o Estado Novo pretendeu ajustar as disponibilidades de investimento público às instantes necessidades de desenvolvimento. Previam-se investimentos nos sec-tores da agricultura, electricidade, indústria, comunicações, transportes, ensino técnico. A Câmara Corporativa estudou o projecto do Governo.4 Salazar quis também que a Câmara Corporativa discutisse a reforma agrária, uma aspiração da Junta de Colonização Interna.5 Mas Caetano não conseguiu nada perante a opinião conservadora dos procuradores.6 Em Julho de 1954, na seqüência de discursos sobre Goa, Damão e Diu, e movimentações que prepararam o terreno, grupos de «voluntários» da União Indiana ocuparam o enclave de Dadrá. Foi o primeiro passo de um processo que levou em 18 de Dezembro de 1961 à invasão de Goa pela União Indiana.7 Reuniu-se em 30 de Julho o Conselho de Estado. Coube a Caetano, o vogai mais novo, redigir a acta.8 Perante a estratégia de defesa intransigente da índia portuguesa, delineada por Salazar com o apoio do Conselho de Estado, Caetano preconizou a maximização dos contactos diplomáticos com Nova Deli, a íim de evitar surpresas e obter dilações.9 Caetano organizou as celebrações do 20.° aniversário da Câmara Corporativa, em 10 de Janeiro de 1955. Foi inaugurado um retrato do primeiro presidente, o general Eduardo Marques, pintado por Henrique Medina. A propósito da celebração, disse a Salazar que não percebia porque estava o corporativismo estagnado e defendeu um novo impulso à política portuguesa. Voluntariava-se para redigir um plano de revitalização do sistema corporativo.10 Salazar aceitou a oferta, mas foi--Ihe dizendo que a Câmara Corporativa tinha amplos motivos de satisfação pela qualidade do trabalho desenvolvido.11 O destaque protocolar de Cerejeira em cerimônias oficiais, relegando o Presidente da República para segundo plano, foi um motivo de protesto de Caetano.12 Nem em Canossa, dizia ele a Salazar, o poder civil andara tão de rastos.

(Fonte : "Cartas Secretas Salazar Caetano 1932-1968 de José Freire Antunes")

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