Se as classes política e intelectual dos nossos dias tivessem alguma abertura de espirito e fossem social e culturalmente menos complexadas, podiam ter colhido muito das ideias, dos saberes e das experiências que foram, ao longo dos tempos, forjando a identidade portuguesa e a nossa maneira de sentir e estar no mundo.
O “novo riquismo” europeísta das classes dirigentes, apoiado no diletantismo bacoco de uma “intelligentsia” esvaziada e de extracção recente, conduziram ao marasmo em que nos encontramos, de que só sairemos quando Portugal e os Portugueses se reencontrarem.
O Texto que se apresenta é bem o exemplo de como, em situação de crise, se escolhe um Rei e se reconstrói um Reino.
“Abertas as côrtes de Coimbra, o Chanceler João das Regras tomou logo a mão para falar, porque a ele tinha sido secretamente confiado o difícil papel de pôr fora de combate, em proveito do Mestre de Avis, os outros candidatos ao trono de Portugal.
Ocupou-se em primeiro lugar da candidatura de D. Beatriz. Combateu-a dizendo que a rainha de Castela era filha adulterina de D.Leonor Teles, por isso que nascera sendo vivo João Lourenço da Cunha; que D. Fernando e Leonor Teles eram ainda parentes em grau que não admitia dispensa, por isso que tanto D. Fernando como João Lourenço da Cunha eram trinetos de D. Afonso III; que, finalmente, não podia haver certeza de que D. Beatriz fosse filha do rei D. Fernando.
E, a fim de libertar de escrúpulos o espírito dos fidalgos que estavam ligados por juramento à causa de D. Beatriz, recordou a violação dos tratados por parte do rei de Castela, e que este estava fora do verdadeiro grémio da Igreja, por isso que reconhecia o papa de Avinhão, ao passo que o governo do mestre de Avis reconhecia o santo padre Urbano, o verdadeiro papa.
O auditório deixou-se arrebatar pela palavra ardente do douto chanceler, e os aplausos rebentaram de todos os lados da sala, especialmente quando ele apelou para o sentimento de nacionalidade, que devia levar todos os bons portugueses a repelirem a candidatura de D. Beatriz, que representava simplesmente uma absorção.
Triunfante da primeira dificuldade, João das regras passou a falar dos dois filhos de D. Inês de Castro.
Esta investida era muito mais difícil, não só porque era muito numeroso o partido da legitimidade, mas também porque o próprio mestre de Avis reconhecera o direito do infante D. João, filho mais velho de Inês de Castro. Mas João da Regras, com a sagacidade que lhe era peculiar, procurou atacar a questão pela raiz, e tratou logo de pôr em duvida a legitimidade do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro. Notou as inverosimilhanças que se davam entre o caracte resoluto de D. Pedro e o suposto receio de declarar enquanto seu pai fosse vivo, que D. Inês era sua legitima mulher; observou que não era crível que todas as pessoas que se dizia terem assistido ao casamento perdessem a memória do dia, mês e ano em que se realizou, excepto uma só, Estevão Lobato, cuja declaração devia avivar a reminiscência dos outros que foram presentes; estranhou que D. Pedro fizesse semelhante declaração só depois de transcorridos quatro anos sobre a morte de seu pai.
“E porque pensais que isto assim então foi feito? (São palavras que Fernão Lopes atribui a João das Regras). Porque em vida de el-rei seu pai, nem depois até aquele tempo, nunca ele pode haver dispensação do Papa, que lhe legitimou os filhos; então fez aquela publicação como vistes, por mostrar que eram lídimos, e valesse o que pudesse valer.”
Tendo preparado o seu discurso com uma sagacidade verdadeiramente notável, João das Regras ia subindo lentamente a escala dos efeitos, e de si para si rejubilava de ver que os seus golpes eram certeiros, e produziam o resultado esperado.
Portanto, fez notar que ainda que D. Pedro tivesse casado com D. Inês, o casamento seria ilegítimo, porque D. Pedro era primo co-irmão do pai de D. Inês de Castro, e ainda também porque D. Inês fora madrinha do Infante D. Luís, filho de D. Pedro e de D. Constança, o que constituía grave impedimento.
Estavam, pois, fora de combate D. Beatriz de Castela e os filhos de D. Inês de Castro, os quais, além da ilegitimidade da sua origem, tinham desservido a pátria em favor de Castela. Pelo que só restava eleger o mestre de Avis que, sobre ser de origem real, tinha defendido heroicamente a pátria em circunstâncias tão difíceis.
Ainda assim, a vitória de João das Regras não era decisiva, porque a assembleia estava dividida em duas facções: uma, que se inclinava para a causa do Infante D. João e era capitaneada por Martim Vasques da Cunha; outra, que advogava a causa do mestre e tinha por orador João das Regras e por leader Nuno Álvares Pereira.
Não se chegara ainda a resolução nenhuma, e a vaga parecia mesmo rugir ameaçadora, o que suscitou a Nuno Álvares a ideia de se desembaraçar violentamente de Martim Vasques. Mas João das Regras parecia tranquilo ao passo que Nuno Álvares se mostrava impaciente. Era que João das Regras tinha ainda de reserva um golpe terrível, que em ultimo caso vibraria triunfantemente.
Com efeito, em nova sessão das côrtes João das Regras pôs em acção a sua aartilharia de reforço, e preparou-se para ler uns documentos “que ele quisera calar”.
O primeiro documento lido foi uma carta do rei D. Afonso ao arcebispo de Braga pedindo-lhe a us interferência paraa que o papa negasse a seu filho D. Pedro, que andava “embevedo de amores”, a dispensa que ele solicitasse para casar com D. Inês de Castro.
Depois, João das Regras passou a ler uma caarta de D. Pedro ao papa, na qual lhe declarava que havia casado com D. Inês de Castro, não obstante o parentesco que tinha com ela, e lhe pedia que confirmasse o casamento, “em guisa que os moços ficassem legítimos”.
Em seguida, e depois de fazer sentir à assembleia a intensidade dos esforços que os embaixadores de D. Pedro empregariam junto da Santa Sé, para obterem a confirmação papal, João das Regras desenrolou um terceiro pergaminho, que passou a ler.
Era a resposta do papa à solicitações de D. Pedro.
Este documento, bem como os outros já referidos, vêm estampados na crónica de Fernão Lopes. Mas, a fim de não alongarmos fastidiosamente a narrativa, limitar-nos-emos a noticiar que o papa Inocêncio VI recusava categoricamente legitimar o casamento e os filhos.
Em vista destas provas, que tinham um grande valor, sobretudo se atendermos à época, o grupo que defendia a legitimidade do filho mais velho de Inês de Castro, alijou os seus escrúpulos, e fez causa comum com os defensores da candidatura do mestre de Avis.
Então, os prelados, fidalgos e procuradores dos concelhos foram oferecer ao mestre a corôa de Portugal. Outro qualquer havê-la-ia recebido a impulsos de alegria, sem procurar firmar-se cadaa vez mais no terreno. Mas o mestre de Avis sabia também preparaar efeitos, e alegou que “havia tais embargos assim no defeito de sua nascença, como na profissão que à ordem de Avis fizera” e, principalmente, que seria inconveniente que sendo rei fosse vencido por Castela, facto que a dar-se não desairaria nem o reino nem a ele, não passando de um simples cavaleiro. Por ultimo, que contassem sempre com a sua boa vontade quando se tratasse de defender a pátria.
A isto replicaram os prelados, fidalgos e procuradores dos concelhos instando para que aceitasse a corôa, porque de outro modo Portugal correria grande risco de cair nas mãos dos inimigos, “maiormente sismáticos e reveis” à Santa Igreja.
O mestre de Avis, que já não podia ser de futuro acusado de ambicioso, porque tinha dificultado a sua anuência, cedeu por fim, e tudo se preparou desde então para o acto solene de aclamação, sendo Nuno Álvares Pereira encarregado de dirigir os apercebimentos da festa.
Com efeito, o mestre de Avis foi aclamado rei de Portugal a 6 de Abril de 1385, tendo vinte e sete anos de idade.
Finalmente, a obra começada pelo povo acabava de ser coroada pelo clero e pela nobreza.
Sentava-se finalmente no trono de Portugal um rei que a vontade popular indicara e cuja candidatura a sua perseverança fizera triunfar.
Três elementos poderosos contribuíram certamente para o bom resultado da empresa: a firmeza do povo, a espada de Nuno Álvares e a provada sagacidade do Dr. João das Regras.”
(Luciano Cordeiro, História de Portugal, II Volume, Livro VI, pags. 343 a 345, Empresa Literária de Lisboa, 1876)
(Fonte: Blogue da Real Associação do Ribatejo)
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